terça-feira, 9 de outubro de 2007

A OUTRA PERNA DO SACI

A OUTRA PERNA DO SACI

Sumário

1 Sinfonia escarlate
2 Celulares
3 Acabou a fita
4 Queixo caído
5 Adão e Eva
6 Bem passado
7 Cinco contra um
8 Persuasão
9 Explicações mal explicadas
10 Anjo noturno
11 Demônios eternos
12 Golpe de mestre
13 Foi tudo culpa da pia
14 Gêmeas
15 Heróis da persistência
16 Olho nu
17 Lâmpada milagrosa
18 Locutora de terminal
19 Meu bem, não é nada disso que você está pensando
20 Iniciação
21 Para bom entendedor uma cerveja basta
22 Parece até pegadinha
23 Mico
24 Inocência ultrajada
25 Peça de inquérito
































Sinfonia escarlate





A
CAMPAINHA TOCOU. Uma, duas, cinco vezes. Zanzonho levantou da privada, deu descarga, se enrolou numa toalha amarela e acorreu abrir a porta. Na sua frente, apareceu Aruca, a vizinha que morava de parede meia, com os pais e seis irmãos. Tinha dezessete anos, a beldade. Era uma loirinha alta e curvilínea, dona de um encanto de fazer inveja em qualquer barbado. No belo rosto, mesmo ao natural e sem os artifícios da maquiagem, algo misterioso realçava seus dotes de princesa. Antes que o rapaz fizesse o convite para que entrasse, ela se adiantou e passou correndo por debaixo do braço dele e se empoleirou no sofá.
- O que houve com seu telefone? Desde ontem venho tentando falar contigo e nada. Que dificuldade!
- O aparelho que comprei pegou dengue.
- O quê?
- Isso que acabou de ouvir. Está com dengue.
- Deixa de papo furado. Ligo aqui no seu fixo e nada. Seu celular idem, só dá na caixa postal. Que droga!
- Sabe o que é? Ele se apaixonou por essa tal de caixa postal. Vão até se casar...
- Engraçadinho. Se não gosta de telefones por que pediu a companhia telefônica que instalasse um aqui na sua casa? E por que, quando sai pra rua, leva outro pendurado no pescoço? Precisava falar com você, urgente. Entendeu? Urgente! Caso de vida ou morte...
- Ainda bem que a pressa acabou. Ia entrar no banho quando você tocou. Tenho um compromisso inadiável e estou atrasado. Até logo.
- Ei, vem cá. É sério.
- Você disse precisava. No sentido como se expressou me cheira a queria. Portanto...
- Está legal, seu certinho. Necessito.
- Qual é a urgência? Não me diga que está pensando em empenhar a tela plana que ganhou da sua tia no dia do seu aniversário e me fazer uma proposta para ficar com a tranqueira em troca de mais um empréstimo?
- Zanzonho, por favor, não brinque. Todas as vezes que pedi dinheiro a você eu paguei bonitinho. Nada lhe devo. Estamos quites.
- Quanto a isso não tenho o que reclamar. Sei que cumpre com suas obrigações. Diga, pois, em que confusão se meteu dessa vez?
Aruca, embora aparentasse descomedida inquietação, não perdia os traços de feminilidade. Os loiros cabelos longos, bem cuidados, caiam em cascata, cobrindo um par de brinquinhos discretos nas orelhas. Da pele macia como o veludo, exalava um toque sutil de perfume de alfazema. As maças do rosto sobressaiam, salientes, com a boca rasgada, deixando à mostra, uma arcada dentaria perfeita, com dentes muito brancos. O corte firme do queixo, os seios fartos e cheios, a cintura fina e sólida, os quadris generosos e redondos, as coxas fortes, um par de pernas longas e bem feitas. Sem falar no sorriso, na voz suave, nos gestos delicados, enfim, havia um conjunto de pequenos atrativos que dava a ela um sex-appeal que exalava inocência contrastando com um outro, bem mais adulto, mais sofrido e, ao mesmo tempo, ligeiramente maroto. Para Zanzonho, tudo nela lembrava o pecado. Numa das mãos, a graciosa segurava fortemente uma granada de brinquedo. Aquilo deveria representar uma espécie de válvula de escape. Talvez, intimamente, alimentasse a idéia de que bastava algo dar errado e o que tinha a fazer, era arrancar o pininho para que o mecanismo explodisse e voasse com tudo pelos ares. De repente, todo seu corpo começou a tremer com tanta violência que mal conseguia manter a postura de moça comportada.
- O que está acontecendo? Quer um copo de refrigerante ou uma taça de vinho?
- Nem uma coisa, nem outra. Apenas que me dê atenção e me leve a sério.
- Prometo que assim farei. Agora me conta o que se passa. Sou todo ouvidos.
Zanzonho sentou ao lado dela e, ao fazê-lo, capturou, não aquele olhar infantil, de alguns minutos atrás, mas um olhar perdido, de profundo medo estampado. Parecia que a sua vizinha, abrira uma cratera enorme em seu rosto brejeiro.
- Preciso que me empreste um dinheiro.
- Já percebeu que é só para isso que vem atrás de mim?
- Só conto com você.
- E o Barão, seu namorado?
- Sumiu, escafedeu, virou pó.
- Pra que a grana dessa vez?
- Psiu! Fale baixo. Estou grávida.
- Legal. E o que eu tenho a ver com a sua trepada mal dada?
- Você é a única pessoa em quem confio.
- Quem é o pai? O Barão?
- Antes fosse!
- Caraca, se não é o almofadinha, quem conseguiu acertar a sua veia?
- Importa?
- Quero saber.
- Vai descolar a mixaria?
- Ou muito me engano ou pretende fazer aborto?
Aruca tampou com a mão direita a boca de Zanzonho, que tomou um susto com esse gesto inesperado.
- Quer um megafone? Meus pais estão ai ao lado e podem nos ouvir.
- Com seis praguinhas gritando? Ouça os berros. Acho pouco provável!
- Meus irmãozinhos não são praguinhas.
- Diabinhos seria uma colocação apropriada.
- E ai? Vai me safar dessa enrascada?
- Totalmente fora dos meus princípios. Sou contra esse tipo de solução. Acho uma desumanidade.To fora.
Zanzonho podia sentir o suor que brotava das mãos dela sobre as suas.
- Zanzonho - implorou Aruca com uma voz cheia de tensão e o coração batendo violentamente - pelo amor de Deus. Se você me deixar na esquina...
- Procure o pai da criança e exponha os fatos. Afinal de contas, quem pariu Mateus que o embale.
Ela fitou seu vizinho com os olhos gelados.
- O cafajeste rachou no trecho.
- Te deixou na mão não é?
- Botou no meu cu com força e deu linha.
Zanzonho aproveitou a deixa e atacou.
- No cu também?
- Porra, meu amigo. É jeito de falar. Qual é! Nunca dei o traseiro.
- Quer me convencer de que o Barão não enfiou o parafuso na rosquinha ai atrás e mandou você rebolar?
- Já disse, não foi o Barão. Ta legal. Vou abrir pra você. Me envolvi com um sujeito e descobri que ele é casado. Mas isso não tem a menor importância agora. Não desvirtue o assunto. Vamos voltar ao que interessa. Responda com sinceridade. Acaso me acha com cara de piranha?
Zanzonho esteve a ponto de dizer que sim com todas as letras. A gravidez indesejada era prova mais que suficiente para corroborar uma verdade que logo viria à tona. Contudo, isso poria suas chances de conseguir alguma coisa com Aruca, rio abaixo.
- Longe de pensar uma barbaridade dessas a seu respeito.
- Então?
- Então o quê? A propósito, já que estamos aqui, nós dois, sem testemunhas, mata uma curiosidade minha?
- Que curiosidade?
- Que diabo de tatuagem mandou fazer na... Na perereca?
Aruca emitiu um tipo de som que mais se assemelhava ao de uma gata assustada sendo expulsa, de surpresa, de cima de uma mesa cheia de petiscos de ratos. Ficou pasma, paralisada, estática, dando a impressão de querer sumir debaixo do tapete a seus pés. Zanzonho não ouviu quando ela soltou um “como sabe disso, seu filho da puta?” porque o ventilador de teto que ele se levantou para ligar, passou a ronronar, a toda velocidade, sobre suas cabeças. Ela ficou furiosa. Possessa. Quando ele voltou a se sentar ao seu lado, lhe aplicou um beliscão violento. Esse gesto, melhor que mil palavras, demonstrou a fúria interior que lhe subiu às ventas.
- Como descobriu? Não falei pra ninguém. Nem a meus pais, ou a minha melhor amiga eu...
Zanzonho pegou a garota pelo braço e a conduziu até o banheiro. Introduziu–a num reservado onde deveria existir um box decente. Ao invés disso, havia uma cortina suja e rasgada e, no lugar do chuveiro, um cano enferrujado que escorria água pela parede. Ao lado da torneira, e do que deveria ser um local para colocar sabonetes, um pequeno orifício aparecia, tímido, como um elefante dentro de um ônibus.
- Espie.
- Credo, Zanzonho. Que mau cheiro! Estava cagando?
- Espie de uma vez.
Aruca se abaixou e meteu o olho. Por ele viu o vaso sanitário da sua casa, a banheira, o cesto de roupas sujas, os irmãos correndo e tudo mais que lá existia.
- Tarado. Filho da puta!
- Chiiii! Abaixe a voz. Podem nos ouvir.
- Então você me espia daqui? Cretino!
- Todo os dias. Desde cedo, quando vem mijar ou fazer cocô. Ouço seus peidinhos... Vejo você escovar os dentes, lavar as partes... Foi numa dessas peregrinações que deparei com a tal tatuagem.
- Desgraçado, safado, veado.
- Veado não. Quando te vejo como veio ao mundo, o sangue sobe. Perco o controle e ai...
- Vomite de uma vez.
- Deixa baixo. Vamos por etapas. Que tatuagem é aquela?
- É o desenho de um homem pré-histórico fazendo amor com sua amada.
- Ficou legal. A segunda coisa é o que realmente nos interessa a ambos. E em cima dela, proponho um trato.
- Um trato? Que trato?
- De quanto você precisa?
- Cinco mil reais.
- Raios me partam. Quantos bebês pretende arrancar dessa barriga?
- Faço o que você quiser. E só pedir.
- Está melhorando. Sendo assim as conversas podem tomar outro rumo. Esqueça a tela plana. Como deve ter notado, tenho uma na sala. Vou ser direto e reto. Bom pra nós dois. Como você acabou de falar que faz o que eu quiser... Ai vai. Eu...
-...Você quer o meu computador. Fechado.
- Tenha calma. Não quero seu computador.
- Então, o quê?
- Faz realmente o que eu quiser?
- Faço.
- Pois então transe comigo, aqui, agora, e eu libero o dinheiro.
Aruca começou a sentir nojo pelo seu vizinho, um nojo que aos poucos se transformou em ódio e desprezo. Não esperava aquilo de Zanzonho, não numa hora amarga como aquela, num momento tão intimo, quando lhe abria a alma inteira e pedia ajuda.
- Jamais. Não sou prostituta nem vendo meu corpo. Vá procurar uma dessas vadias de...
-... É pegar ou largar. Quem precisa da bufunfa não sou eu.
- Você é nojento, desprezível.
- Não, não sou, mas confesso que quando estou com meus sentidos grudados em você, no seu corpo, principalmente na sua bundinha maravilhosa, a minha emoção aqui no meio das pernas não consegue ficar em estado letárgico. Isso é ser nojento e desprezível?
Tudo começou a rodopiar em volta de Aruca, como se alguém tivesse tirado a tampa daquele ralo imundo e um redemoinho gigantesco puxasse seu corpo para dentro.
- Por favor, Zanzonho... Não faça isso...
- Me dá o que eu quero e o cascalho vai pra sua mão.
O rosto do rapaz perdeu completamente a cor como se uma artéria importante houvesse se arrebentado e ele começasse a perder sangue rapidamente.
- Não, Zanzonho, não... Não... Não...
Por um momento, o ar ficou tão parado e pesado que Aruca parecia andar embaixo d’água.
- Solta o fiofozinho. Só quero entrar no seu rabicó. A parada fica aqui, entre nós. Prometo ser discreto e carinhoso. Vamos, Aruca, me faça presente de seu cuzinho. Eu não mereço? Pense, cinco mil reais, cinco mil, por um buraco fedido...
No que falava, Zanzonho deixou cair, propositalmente, a toalha. Apareceu diante dela uma avantajada arma de artilharia, pronta para entrar em ação. Aruca levou a mão à boca, horrorizada. Embora não fosse virgem, e tivesse tido experiências sexuais com vários namoradinhos, nunca vira um pau tão grosso e comprido como aquele. Zanzonho captou essa fraqueza no ar e não esperou por uma decisão definitiva. Sem dar tempo a jovem de se refazer do susto, enlaçou-a pela cintura, ajeitou a como pode, de quatro, as mãos agarradas na bacia da privada.
- Sugiro que seja boazinha e aceite como uma coisa natural. Acho que será pior pra você, se lutar contra. Não vai doer. Serei generoso. Penetrarei sua cauda bem devagar, com todo cuidado. Enquanto eu desfruto do seu figo, pense na grana, na grana. Aproveite, minha linda, aproveite para relaxar... E... Claro, gozar...
- Pelo amor de Deus, Zanzonho, não pode fazer isso... É estu...
Enlouquecido pelo desejo, Zanzonho pouco se lixava para o que a garota balbuciava em meio a uma crise convulsiva de choro e soluço que lhe acometeu. Naquele momento, só queria saber de dar cabo da sua pretensão. Suspendeu a saia até a altura das costas e, pausadamente, arriou a calcinha. O excitamento sexual levou sua afoiteza a rápidas reações multiorgásticas. Então mandou brasa. Gritos abafados de dor se misturaram a urros e deleites de um animal em fúria. Dessa forma humilhante e pior que isso, se prevalecendo da necessidade da pobre garota, Zanzonho entrou com tudo o que tinha direito, até que um filete de sangue verteu, de Aruca, como lava escorrendo dos lábios de um vulcão.




























Celulares

N
O ÔNIBUS LOTADO O CELULAR do passageiro sentado no banco ao lado da porta da saída entoa a 9ª Sinfonia de Beethoven. No terceiro toque o sujeito decide.
- Alô! Alô! Alô!...
Diante da mudez do aparelho o cidadão espia meio desconcertado, para um lado e para outro, a fim de averiguar se alguém olha para ele. Ninguém parece preocupado, embora todas as atenções estejam discretamente voltadas para sua pessoa. Nova chamada. Desta vez espera uns segundos. Atende, ansioso.
- Alô! Alô! Merda! Alôooa!...
Nada.
Uma moça trajando um conjunto verde, parece um abacate amarrado pelo meio, viaja logo atrás. O telefone dela, com o toque da “Vamos fugir” também resolve se fazer presente. Ao atender, seu rosto se ilumina num sorriso mágico.
- Tô chegando, amor...
Há uma pequena pausa.
- Você já está no ponto? Devo pintar ai dentro de uns cinco ou seis minutos...
Novo intervalo.
- Te amo. Beijos.
Um terceiro celular enche o ambiente com a música da Pantera Cor de Rosa. Uma colegial com o rosto abarrotado de espinhas solta uns gritinhos estridentes, antes de iniciar a conversação.
- Rodriguinho, seu veado. Isso lá é hora de ligar?
A 9ª Sinfonia de Beethoven volta à baila e se mistura com a voz da adolescente.
- Alô! Alô! Alô!
Desta vez a ligação tem êxito. O passageiro sentado no banco ao lado da porta da saída consegue, finalmente, manter o diálogo com seu interlocutor.
- Legal cara. Parabéns!
Gesticula e fala alto o suficiente para irritar um defunto. Sem um pingo de decência, age como se perto dele não houvesse uma leva de pessoas que merecesse, ao menos, um pingo de respeito e educação.
- Até que enfim. Então você está indo para Portugal? Faça uma boa viagem, meu amigo. O Pedro te manda um abraço. A Luíza um beijo, o Carlos um puxão de orelhas...
Vamos fugir volta a disparar no telefone da moça toda de verde. Ela prontamente abre a bolsa e atende:
- Amor, tenha um pouco de paciência. Que loucura! O quê? Fala mais alto...
De repente a coisa toma proporções descomunais. A colegial pisa em ovos de tão indignada e irritada.
- Vá pra merda, Rodriguinho. Não me racha a cara!
O sujeito sentado no banco ao lado da porta parece um lunático.
- Seu avião sai a que horas? As 19? De onde? Eu... O quê?
Lado esquerdo do coletivo, um casal assiste a tudo com os olhos arregalados. A certa altura o rapaz comenta, num cochicho:
- É mole ou quer mais?
- As pessoas – observa a moça igualmente aos murmúrios - perderam o senso do ridículo. A sensatez foi pro brejo. Ninguém respeita mais a individualidade...
- Virou febre esse negócio. Todo mundo agora tem celular. Li, ontem, no jornal, que já estão a venda, no mercado, aparelhos celulares de última geração para cachorros.
Risos.
- Fala serio? Qual o quê! Isso é piada!
- Não é não. Agora, além de hospitais, hotéis e restaurantes, os cachorros vão poder contar com mais essa vantagem.
- Se for verdade o que está me dizendo, minha nossa. É o cúmulo do absurdo. A que ponto chegamos. Olhe só para essa gente. Parece um bando de alucinados. Ninguém se entende.
Um homenzarrão puxa a campainha. Pessoas se levantam. Outras tantas tomam posição para apear.
- Vá se lixar, Ro...
- Olhe, se lá em Portugal não tiver mulher que sirva, volta e leva uma brasileira. As mais bonitas do mundo estão aqui, meu chapa...
- Rodriguinho, eu pensava, até agora, que você fosse do conceito. Me enganei redondamente. Vá pro inferno, ta ligado?
A moça toda de verde dá um salto ao ver o rapaz que a espera, na calçada defronte à porta de acesso de uma loja de departamentos. Passa a mão no telefone e disca um número da memória.
- Ei, amor, olha euzinha aqui. Cheguei. Já me enxergou? Estou te vendo. Me dê adeusinho....
Nessa hora, então...
- A mãe te manda um abraço. Vá com Deus. Chegando em Lisboa, ligue... Entendeu? Ligue, ligue, ligue, cacete!...
No mesmo clima...
- Rodriguinho, ô sem noção, o bagulho por aqui ta tenso. Meu namorado não vai gostar. Com certeza levará um lero contigo e depois, com certeza, te comerá na porrada, meu...
A moça de verde, afoita:
- Com licença, meu senhor... Com licença...
- Calma senhorita. Vou ficar por aqui também. Deixe ao menos o motorista parar e liberar a traseira.
-... De Lisboa? Puta que pariu!
-... Ro, Ro, cuidado com a tribo, malandro. Quer saber? Estou injuriada. Vá se foder de verde e amarelo...
-... Amor, amor, estou descendo...
Sobra o casal acomodado no lado esquerdo, rindo da galera a mais não poder.
- Odeio celular – pondera a jovem depois que todos saem. - Parece que esses trocinhos controlam nossa vida... Alias, dominam, vivem no nosso pé. Jogou, definitivamente para o ralo, a nossa intimidade.
- Estou com você – completa o rapaz – O negocio é bom, mas, em certas horas, se torna deselegante e cai no vulgar. Tira a privacidade. Imagine, daqui a algum tempo como lhe falei ainda a pouco, a gente cruzando na rua, com essas madames, metidas a besta, atendendo o telefone. “É pra você, Fifizinha!”.
A jovem se abre num sorriso contagiante e ainda pensa em responder alguma coisa. Nesse momento, entretanto, seu celular estronda Tchaikovsky.
- Desculpe! Meu marido...
Pede licença, baixa a cabeça e, sem tirar o aparelho do ouvido se acomoda num banco lá na frente, ao lado do trocador.








































Acabou a fita

O
sujeito pega o telefone e enquanto liga para o amigo vai se desfazendo dos sapatos e das meias pelo meio do corredor a caminho da cozinha. Fala:
“Alô? Luiz, seu bobalhão, sou eu, o Carlos. Neste exato momento acabei de chegar em casa vindo do prédio onde funciona seu escritório. Toquei a campainha uma porrada de vezes e ninguém atendeu. Sua secretária não veio trabalhar, ou não quis abrir, sei lá. A garota da sala ao lado, de nome Bethânia, chegou às oito horas e dez minutos e, me vendo impaciente, andando para lá e para cá, feito coro de pica, e àquela hora da manhã, ofereceu um copo de água gelada, um cafezinho que fez na hora e, depois, caneta e papel. Não podia simplesmente ir embora ou virar as costas. Achei por bem enfiar por debaixo da sua porta, um bilhetinho simples para você saber que realmente estive lá. O negócio é o seguinte: procurei feito um imbecil o nome que você me passou, ontem, por telefone. Fui em todas as livrarias da cidade (são quase vinte) e não encontrei nenhum livro de Julia Petit.”
“Aliás, Luiz, ninguém conhece Julia Petit por aqui. Liguei para sua casa e consegui falar com a sua filha. Ela confirmou o nome da criatura: realmente Julia Petit, com o t mudo no final. Argumentei que na pressa, talvez você tivesse me passado o nome errado. Quem sabe, não fosse Julia, mas Rulia, Nulia, Sulia, Vulia, ou qualquer coisa parecida. Sua filha garantiu que era Julia, até soletrou, jota de jaca, u, de uva, ele, de laranja, i de indelicadeza e a de amendoim. Parti, então, para o Petit. Não seria Petite com e, ou Petitte com dois tes?. Acho que consegui tirar a sua simpática mocinha do sério. Nas ligações seguintes a jovem só não me chamou de santo, mas percebi, pela alteração da voz, que meu papo estava se tornando chato e incômodo. Insisti em continuar a conversa, mas ela, com a grosseria e o atropelo que rondam a cabeça da juventude, acabou por me mandar tomar naquele lugar por onde expelimos nossas fezes, ou seja, o cu. Não contente, meu amigo, pá, desligou na minha cara. Fiquei como um abestalhado, a boca aberta, as palavras entrecortadas na garganta, o telefone no ouvido e o troço: tu, tu, tu, tu, tu, tu...”.
“Você sabe muito bem, amigo Luiz, que odeio quando alguém interrompe a ligação, sem mais nem menos, e eu fico boquiaberto, feito um panaca, sem saber o que fazer com o auscultador na mão. Pior é o tu, tu, tu, tu, tu, tu...”.
“Só por vingança disquei de novo. Decidi soltar meia dúzia de cobras e lagartos no escutador de novelas da sua menina, não por raiva, só para que ela aprendesse a respeitar os mais velhos. Contudo, na primeira tentativa a porcaria deu ocupado e o tu, tu, tu, tu, tu, tu, se fez ouvir logo que terminei de riscar o quarto número. Insisti por mais umas quinze vezes. Todas infrutíferas. Resolvi dar um espaço. Cinco minutos. Findo esse tempo, voltei à carga. Nada! De novo, uma, duas, dez, vinte vezes, Luiz, acredite, vinte vezes e a mer... digo, a porcaria, insistente: tu, tu, tu, tu, tu, tu...”.
“Com certeza sua filha está de marcação serrada. Não é possível que ficasse pendurada por tanto tempo, sem dar folga. Bem, pode ser também que tenha deixado o fone fora do gancho, por descuido. Para matar as horas, Luiz, optei por um novo rolé. Tomei um café, comi um pão com manteiga e, após isso, voltei à peleja. Gastei, meu amigo, duas horas e meia refazendo as livrarias. Uma por uma. As respostas das atendentes eram sempre as mesmas. Teve uma que resolveu me encher o saco. Chato quando alguém lhe torra as medidas, não é verdade? Vou tentar reproduzir o diálogo que tivemos”:
- Senhor, não temos nenhum livro de Julia Petit, nem de Julia Petite ou similar. Por acaso o senhor saberia dizer qual o nome da obra que ela escreveu? É romance? Livro de auto-ajuda? Esotérico? Já procurou em casas que vendem produtos espíritas? O senhor não gostaria de levar o último de Paulo Coelho, ou o recém de Lya Luft?
- Obrigado.
- Não gosta de Zíbia Gasparetto? Ah! Temos também “Por Que os Homens Fazem Sexo e as Mulheres Fazem Amor”.
- E por quê?
- Desculpe, ainda não li o livro, mas dizem que é bom. Minha supervisora devorou de cabo a rabo e achou massa.
- Massa?
- É. Legal!...
- Minha filha, você já leu Kafka?
- Não senhor.
- E Roberto Shinyashiki?
- Nunca ouvi falar.
- Nem eu. Prefiro Fernando Sabino.”
“Esse foi, Carlos, na íntegra, o bate-papo que trocamos, eu e a vendedora, em uma das livrarias. Para você ver que não estou mentindo, trouxe o nome dela, o número do CPF, identidade, carteira de trabalho e o telefone, caso o amigo queira ligar e confirmar realmente minha presença lá. Mudando de pau para cavaco, uma gracinha, a guria. Maria Helena, o nome da tetéia. Lembra Paula Hunter, filha de Carlos Manga, diretor de núcleo da Rede Globo. Já sei, você não sabe quem é a Paula, nem o Carlos Laranja, desculpe, Manga, Manga. A Paula é a Gilda de “Um Só Coração”. Você está assistindo, não está? Pois é, a Paula é a Gilda”.
“Para terminar, achei por bem colocar por debaixo da porta do seu escritório um bilhetinho com os dizeres: Ligue-me, ligue-me, ligue-me, pelo amor de Deus, ou vou acabar louco. Assinado, seu amigo Luiz”.
***
Quando Carlos chegou em casa, à secretária eletrônica sinalizava que havia ligações não atendidas. Apertou o play. Vinte gravações. Todas, sem exceção, do Luiz. Retornou:
- “Luiz, sou eu, atenda essa merda de telefone. Caralho! Eu sei que está ai. Recebi seus recados. Vinte ao todo. Não precisava ligar tantas vezes, mané. Achei seu bilhete, pi, pi, pi, pi, pi, pi, Julia Petit, pi, pi, pi, pi, pi, pi é Ju... pi, pi, pi, pi, pi, pi, Julia. Escreve-se, J, u, l, i, a -, pi, pi, pi, pi, pi, pi, - e Petit se soletra pi, pi, pi, pi, pi, pi,... p, e, t, i, t. O t é mudo, o t é mudo no final, pi, pi, pi, pi, pi, pi, Julia, pi, pi, pi, pi, pi, pi, Petit, seu Zé babaca, pi, pi, pi, pi, pi, pi, é pro pi, du, pi, pi, to, pi, pi, pi, ra, pi, pi, pi, pi, mu, pi, pi, pi, pi, pi, si, cal, pi, pi, pi, pi, pi, pi, não, pi, pi, pi, pi, pi, pi, é, pi, pi, pi, pi, pi, pi, es, pi, pi, pi, pi, pi, pi, cri, pi, pi, pi, pi, pi, pi, to, pi, pi, pi, pi, pi, pi, ra. Ela pi, pi, pi, pi, pi, pi, está, pi, pi, pi, pi, pi, pi, na lis, pi, pi, pi, pi, pi, pi, ta, pi, pi, pi, pi, pi, pi, dos, pi, pi, pi, pi, pi, pi, mais, pi, pi, pi, pi, pi, pi, bem pi, pi, pi, pi, pi, pi, vesti, pi, pi, pi, pi, pi, pi, dos, pi, pi, pi, não, pi, dos, pi, mais, pi, bem, pi, vendi, pi, pi, pi, pi, pi, pi, dos, pi, pi, pi, pi, pi, eu disse, pi, pi, pi, pi, pi, pi, vesti, pi, pi, pi, pi, pi, pi, dos, pi, pi, pi, pi, pi, pi, não, pi, pi, pi, pi, pi, pi, vendidos. E, por fa, pi, pi, pi, pi, pi, pi, vor, pi, pi, pi, pi, pi, pi, não, pi, pi, pi, pi, pi, pi, me, pi, pi, pi, pi, pi, pi, tor, pi, pi, pi, pi, pi, pi, re, pi, pi, pi, pi, pi, pi, tam, pi, pi, pi, pi, pi, pi, to, pi, pi, pi, pi, pi, pi, a por pi, pi, pi, pi, pi, pi, ra, pi, pi, pi, pi, pi, pi, do pi, pi, pi, pi, pi, pi, sa, pi, pi, pi, pi, pi, pi, co. Pi, pi, pi, pi, pi, pi. Vá, pi, pi, pi, pi, pi, pi, para, a, pi, pi, pi, pi, pi, pi, a, pi, pi, pi, pi, pi, pi, puta, pi, pi, pi, pi, pi, pi, que... Pa...Piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii!...”.


















Queixo caído

M
AL ENTROU NA LOJA DE CALÇADOS A MOÇA PROVOCOU um suave burburinho nos quatro atendentes que estavam mais próximos da porta. Impensadamente, todos de uma só vez se precipitaram em direção a ela.
- Bom dia – disse um.
- Pois não? – gritou o outro
- Em que posso ajudá-la – acorreu o terceiro?
- Preferência por alguma marca em particular?
Diante de tantos rapazes bonitos, charmosos e elegantemente vestidos, a jovem composta por uma simetria corporal perfeita e uma luminosidade vital que transbordava alegria e erotismo a um só tempo, optou pelo mais tímido que se limitou a um “Bom dia”.
- Gostaria que me mostrasse alguma coisa diferente do que estou usando.
Em resposta o atendente esticou o braço direito indicando um dos muitos bancos existentes
- Por favor, me acompanhe.
Antes de se acomodar, a jovem deu uma caminhada básica pelo salão como se procurasse nos milhares de produtos expostos, alguma coisa que lhe chamasse a atenção. Na verdade, só queria mostrar seus dotes de princesa envoltos por debaixo daquele vestido azul marinho, bem curto e esvoaçante sabendo, de antemão, que deixava todos os marmanjos ali presentes (inclusive o que a seguia de perto), dissimuladamente embasbacados. Para os que haviam sobrado garimpassem mais acentuadamente seu visual impecável, levantou um pouco o tecido que cobria os joelhos de maneira insinuante. Finalmente, sentou no local indicado cruzando as pernas bem devagar.
- Qual seu numero?
- 34.
- Aguarde só um minutinho. Trarei as últimas novidades que acabamos de receber.
Dizendo isso, sumiu, atrás de uma porta vai-e-vem que ficava perto da seção de abertura de créditos. Ao lado, uma fila aguardava vez para fazer pagamentos de carnês.
Os três vendedores que ficaram a ver navios, começaram a trançar de um lado para outro. Passavam na frente da jovem, balançavam a cabeça em sinal de cumprimento ou simplesmente sorriam e desviavam os olhos para suas lindas pernas. E que pernas! Ela percebeu que deixara a todos extasiados, naturalmente em decorrência do panorama que exibia. Resolveu apimentar um pouco mais a visão da galera tornando a coisa bem quente e exótica. Propositalmente derrubou o celular. No que se abaixa entre as poltronas, para reaver o aparelho, permitiu, ao se curvar, pudessem os engraçadinhos bisbilhotar um pouquinho além do que deviam. Nessas alturas, literalmente, todos os vendedores ficaram sem ação, boquiabertos, como se estivessem embasbacados. Houve um silêncio solene, colossal e abrupto. Também, diante de uma coisa maravilhosa como aquela e levando em conta o que estava à mostra, faria qualquer homem normal arregalar os olhos e babar. Foi o que aconteceu. Devido à movimentação pouco exagerada dos vendedores, o gerente caiu em si e pescou no ar, o lance. Arranjou um jeito discreto de sair de trás do balcão estendendo a conversa com uma cliente. A intenção dele era a de levar a senhora que fora pagar uma prestação até a porta. Na verdade, tencionava passar perto daquela deusa e gozar, como os demais funcionários, do que ela oferecia, de graça, para o deleite dos olhos esbugalhados de todos.
Com uma dezena de caixas coloridas em cada uma das mãos, eis que surge, de volta, o vendedor escolhido. Ele caminhava devagar, para não deixar que nada fosse ao chão. Nesse instante, sem exceção, a loja inteira parou, inclusive alguns clientes que vasculhavam as vitrines. Todas as cabeças se voltaram para aquele pobre que se aproximava, cambaleante, pé ante pé, solícito, o mesmo sorriso de sempre nos lábios. A linda, ao vê-lo, se levantou, e o ajudou a se livrar daquela carga, colocando um pouco das caixas sobre uma das poltronas.
- Nossa você caprichou.
- Trouxe tudo que encontrei em nosso estoque e espero que alguma coisa aqui venha a lhe agradar.
- Com certeza.
- Posso dar uma sugestão?
- Claro.
Tirou de dentro de uma das caixas um belo par de sapatos e o exibiu a jovem.
- Experimente É a sua cara.
Ela voltou a se sentar e ele se pôs de cócoras, para calçar o pezinho que ela lhe indicava. Foi ai que aconteceu. No instante em que abotoava o fecho da sandália. A graciosa fez de propósito. Premeditou tudo. Abriu as pernas. Era como um auto-de-fé. Uma obsessão, um vicio. Não conseguia domar a criatura selvagem que morava dentro de seu ego medieval. Queria ver a reação, sentir de perto e na pele, como cada um se comportava diante de uma provocação inesperada, como aquela. Num primeiro momento, o atendente, entretido em cuidar de pequenos detalhes, não só para agradar como para não perder a venda se esqueceu de espiar para um pormenor maior que o seu limite de contenção. Contudo, ao se dar conta do que desfilava diante de si, o coração disparou, o sangue ferveu, seu rosto perdeu a cor natural. Por segundos, andou sobre fogo e nadou em gelo. Abriu trilhas numa selva que ate então vivia adormecida dentro de seu corpo. Teve a impressão de morder cabeças de cobras venenosas e arrancar o couro de tatus e porcos-espinhos. As batidas de seu coração se espalharam por todos os cantos como tambores. Chegaram a ponto de provocarem um eco retumbante naquele outro coração que dormia, quieto, logo abaixo, dentro da cueca de algodão. Olhou ao seu redor, assustado, sem saber o que fazer, ou que atitude tomar. Uma sensação gostosa e atemporal se alastrou por sua mente. Continuava atarantado, fora de si, sem ação e perdido. Percebeu que um entusiasmo erótico instantâneo mexeu com seus nervos. Enquanto isso, a cliente, mordiscava os lábios e sorria maliciosamente. Sabia que havia alcançado seus objetivos. Podia se ver em seu rosto travesso, que aquela cena mexia com seu interior. Havia uma estranha combinação de magia e poder feminino sobre a presa, a essa altura transformado num duende completamente estabanado segurando fortemente um de seus pés. Resolveu levar adiante a estripulia. Descerrou, por completo, seu triangulo preto, seu esconderijo secreto, e o fez sem meios termos, sem pudor, sem nenhum sentimento de vergonha. O pobre rapaz tremia na base. Diante dele, a doce cavidade do prazer em completo repouso e a espera de ser atingida. Nessa visão colossal, ele viu um jasmineiro florido, com passarinhos cantando uma melodia suave. Sentiu como se um milhão de luzes houvessem se acendido e, no minuto seguinte, teve a impressão de mergulhar numa piscina de águas mornas. O cheiro da maça entrou em suas narinas. Pressentiu o pecado se agigantando, tomando conta da sua vontade. Seus olhos não mentiam. Não via coisas, nem sonhava acordado. A jovem era real, tudo ali tinha forma física e podia ser tocado. Com as mãos, a bela moveu um pouco o vestido, permitindo que o desvairado ficasse mais perto do calor e da tentação e, nesse clima erótico, o infeliz se deleitasse com todas as transgressões que pudessem ser criadas por sua imaginação. Para os demais da loja, o vestido da facécia cobria o essencial. Especialmente para o vendedor sortudo, a safadinha mostrava a cobiça, o apetite, à vontade exacerbada se agigantando no meio de suas coxas. Um ponto dentro dela de repente explodiu em líquido puro. A poção do universo veio a baixo, molhou o assento da cadeira. Diante da incredulidade do vendedor, ela, sem a calcinha, alcançou o epítome do que buscava. Gozou.






























Estava escrito


U
M GRUPO DE AMIGOS DE UMA MESMA empresa resolveu parar no centro da cidade e almoçar num ambiente diferente daquele a que estavam acostumados. Depois de algum tempo de procura, optaram por um self-service que oferecia preços módicos no quilo, com churrasco, além de um copo com suco de laranja grátis, acompanhando de uma sobremesa a escolher. O restaurante não tinha nenhuma sofisticação chamativa. Bastante simples, asseado, e acolhedor, mantinha as mesas no espaçoso salão a uma distância regular, de maneira que a clientela, por mais que se acotovelasse na hora de movimento intenso não se sentisse espremida, esbarrando uma sobre as outras. De moderno, uma porta de vidro fumê, aparelho de ar condicionado central e música ambiente de gosto apurado.
A turma elegeu, por unanimidade, uma espécie de reservado, onde juntaram mesas e cadeiras formando um círculo sobre o qual todos se veriam de frente e ninguém correria o risco de ficar de fora do bate papo que rolaria durante a refeição. Numa das paredes que fazia fundo à peça, sobressaía um enorme painel que ocupava toda a parede, consumindo-a de um extremo a outro e, onde se via, pintado em alto relevo, o Paraíso Celestial, bem como o primeiro homem e a primeira mulher; os animais em derredor vivendo em disposição bem ordenada e, em sintonia com a natureza; além de árvores frondosas e copadas. Destacava, ao alto, um céu límpido e muito azul, com ralas nuvens brancas e, ao longe, um riacho de águas cristalinas descendo por entre um emaranhado de árvores e pedras.
A tela de cores fortes conciliava a perfeição e a destreza do autor, realçando seu espírito criativo em grau máximo, ao mesmo tempo em que sobrelevava sua simplicidade a patamares profundos, tornando a obra praticamente uma coisa quase real dentro do irreal. Dava a impressão de que o Jardim do Éden se fundia com o resto do refeitório, tamanha a beleza, a calma, e a tranqüilidade que emanavam de todo o conjunto, declarando-o ausente de qualquer defeito de criação.
Ambrósio, o mais velho do grupo, de descendência alemã, mal começou a comer estancou com o garfo no ar. Olhando fixamente para o quadro, comentou:
- Parem um pouco e observem aquela gravura. Olhem bem para o Adão. Corpo atlético, o físico bem trabalhado, lembra ligeiramente o capitão José Albucacys Júnior (para quem não sabe, o bombeiro responsável pela separação da Luma com Eike Batista, o marido corno), as faces vermelhas, ruborizadas, talvez, pelo sangue puro que lhe corre nas veias. E a Eva? Que doçura, que candura! Se eu apreciasse a Luma, diria que a Eva é a cara dela, escarrada e cuspida, mas como não gosto da Luma... Prefiro mil vezes a Cássia Eller. Contemplem as pernas, os seios, os olhos. Angelicais. Ah! A Eva deve ter sido clonada da Cássia Eller, apesar de dizerem por ai que ela não gosta da fruta. Por isso bato uma aposta. Adão e Eva com certeza, eram alemães.
- Discordo plenamente – interrompeu Narciso com um ar engraçado. – Se vocês botarem atenção mais apurada no Adão e fixarem bem na ferramenta de trabalho (olhem o tamanho) e, conseqüentemente perderem uns bons segundos no vasto e cabeludo triângulo de amor da Eva, no meio das pernas, verão que, de ambos, desprende uma espécie de erotismo nato, quase tribal, com pinceladas animalescas. Adão deve tirar umas cinco e deixar a Eva em frangalhos e, quando falo em frangalhos, me refiro às partes pudentes, que nessa, hora ficam em brasa viva. Sem medo de errar digo a vocês, aqui, agora: estamos diante de um belo casal de franceses. E não asseguro isso só porque morei na França, quatro anos. Nada a ver...
Baldaraque, um loiro vesgo que nunca deixava de mascar chicletes, nem tirava os óculos escuros da testa contestou os amigos que acabaram de opinar:
- Pelo amor de Deus, não falem besteiras. Ambrósio e Narciso, vocês estão complemente equivocados. Prestem atenção nas mãos de Adão. Vejam, que mãos. São de homem macho. Fixem o semblante da Eva. Reparem nos cabelos de princesa, a fronte de rainha, o nariz de gente fina, a pele bem tratada, os seios delicados. É bom lembrar, ainda, que Adão e Eva tinham, nas veias, sangue nobre, sangue inglês. Você não está de pleno acordo comigo, amigo Tomaz?
Tomaz, até aquele momento, no mais profundo silêncio, só ouvia o papo furado enquanto mandava para dentro um suculento filé bem passado e se deliciava com as batatinhas fritas. Não estava ligado na conversa e, para ele, aquele assunto não tinha a menor importância:
- Tomaz está dormindo, cara?
- Desculpem, andava longe! O que foi que disse?
- Estou afirmando para nossos caríssimos, que Adão e Eva como estão postos naquela pintura ali, eram ingleses. O que você teria a nos dizer com relação a isso?
Tomaz levantou os olhos e os fixou, por breves segundos, no painel gigantesco. Depois de prolongada contemplação se voltou para os companheiros e observou, muito sério e senhor absoluto do que expunha:
- Os prezados não perceberam alguns detalhezinhos, a meu ver, importantíssimos. O Adão está nu. A Eva, pelada. Nenhum deles tem roupas ou sapatos. Não há casa ou barraco por perto. Parece que vivem sem teto, ao relento, expostos a chuva e ao vento. Não vislumbro sinais de abrigo, sequer uma barraca dessas vagabundas, para passarem a noite. Vejo mais: apenas uma maçã, uma única maçã para comerem, na mão de Eva. Já nem quero falar da cobra ao lado. Estão vendo a cobra? Parece meio desvairada, sei lá. Pois bem: numa escala ascendente tentando ser um pouquinho melífluo, Adão transmite um ar de babaca, de bobo, igual o Marcelo Dourado, do Big Brother. Lembram do Marcelo Dourado? Aquele cara que não protestava, não gritava, não lutava por dias melhores. Durante o tempo em que esteve na Casa nunca chegou a se esforçar para nada, nem para ganhar o prêmio que a Rede Globo oferecia. Quando finalmente se decidiu, o Pedro Bial mandou o idiota plantar coquinho. Dei o Marcelo, como exemplo, porque foi o único que me veio à mente. Poderia ter sido um outro qualquer. Pois bem: a Eva, com aquele par de peitos prontos para serem sugados, mamados, um traseiro descomunal e uma boce... Desculpem, uma periquita maior ainda, livre e desimpedida para entrar no ferro e, levando em conta o sorriso sacana e maroto, recorda, vagamente, a Antonela Avellaneda no tempo em que dançava numa boate vagabunda e soltava a franga sem medo de ser feliz. O Adão não tem bunda, só pau. A Eva parece doida de pedra para liberar o traseiro e esconder a trosoba de seu homem. Esses dois, meus prezados, finalizando a minha humilde observação, fodidos, mal pagos e, ainda, sonhando com o paraíso, só podiam ser brasileiros.



































Bem passado.

A
EMÍLIA TINHA NA CABEÇA, além dos cabelos literalmente loiros e compridos uma fantasia excêntrica. Fazer amor ao vivo e a cores com o namorado, em seu local de trabalho. Fábio era chaveiro e passava os dias numa espécie de mini trailer 24 horas instalado numa avenida movimentadíssima do centro. Para piorar, funcionava, contíguo, um shopping center recém inaugurado. O troço fervia como uma feira livre, de segunda a domingo. Mal dava oito horas, começava a chegar gente vinda de todos os lados. Nessa correria desenfreada o rapaz sequer conseguia respirar.
Na sua peregrinação, vezes sem conta, Emília rondava o pedaço, na expectativa de tornar seu sonho realidade. Todavia, sempre na horinha agá pintava um serviço urgente para o rapaz, e a vontade dela acabava por ficar presa, como um nó incomodando na garganta. Nervosa, ou melhor, furiosa, a coisa estava mexendo com seus pensamentos, remoendo de tal forma que em pouco tempo acabaria virando uma tremenda paranóia. Não colocasse em prática as loucuras que se formavam em sua mente, com certeza acabaria lelé da cuca.
A noite, não dormia direito. Mal se recolhia, estranhos pesadelos se formavam e invadiam seu pequeno mundo que não ia além de um quarto muito amplo e ricamente mobiliado com pôsteres gigantes da Daiane dos Santos e Sean Penn espalhados pelas paredes. Seus pais lhe davam de tudo e, nesse tudo, incluía o que havia de melhor: um espaço só seu, cheio de bonecas, um guarda-roupa abarrotado de peças finas, sapatos caros e de marcas famosas. Na garagem, ao lado da Mercedes do pai e do Jaguar da mãe, um Peugeot zero bala para não ir e voltar da faculdade de comunicação sem precisar enfrentar ônibus lotados. Não contando que morava numa suntuosa mansão incrustada num bairro nobre onde residia a mais alta nata da sociedade.
Em paralelo, seus genitores viviam ligados à moda fashion e quase sempre a mídia especializada nessa área marcava presença em jantares e reuniões de negócios em busca de novidades e fofocas.
Embora tivesse tudo a tempo e a hora, Emília não estava satisfeita com sua vidinha pacata. Recém hospedada na esteira dos vinte anos, fazia dois meses que conhecera o Fábio e começara a namorar sério com ele. Escondida dos pais, mas sério. Foi amor à primeira abertura de um cadeado que ele fez e nem se lembrou de cobrar. Logo que viu o pedaço de mau caminho, seu coração de mulher se abriu como um pára-quedas e, dai em diante, passou a quebrar as chaves nas fechaduras e a cegar os alicates de unha da mãe e de uma tia solteirona que morava junto, só para as duas, obrigatoriamente, passarem de carro, no trailer do saradão e encomendar seus préstimos, e, claro, pedir, depois, que ela fosse buscar e pagar pelos serviços. O encontro inaugural aconteceu meio que sem graça. Mas rendeu.
- Oi!
- Oi...
- Você amola esta faca de cozinha para mim?
- Claro. É pra já.
Fábio, vinte e dois anos, o que tinha de bonito, carregava de tímido. Caladão e sério, não ia além de um sorriso maroto. Contudo, diante de Emília como num passe de mágica a vergonha de repente passou a dar lugar a ousadia.
- Que livro é esse?
- Capitu Sou Eu, de Dalton Trevisan.
- Já li alguma coisa dele.
- Você também é chegado em leituras?
- Bastante.
- O que está lendo?
- Zero Absoluto de Chuck Logan. Como meu tempo é curto e as horas corridas, levo quase um mês para chegar ao final. Antes de Logan, consegui terminar Harold Robbins.
- Maneiro. Já li alguma coisa dele.
- O cara é irado.
- Tô ligada.
Emília realmente se ligou. A tal ponto que no encontro posterior rolou uns beijinhos, mãozinhas bobas aqui, mãozinhas bobas ali, até que a moça encucou de se entregar, de corpo inteiro, e a alma, de lambuja. Afinal de contas vivia seu primeiro caso, curtia o primeiro namorado, o primeiro homem, seu primeiro amor de verdade. Decidiu que esse momento tinha que ser ali, no trailer apertadinho de Fábio, entre chaves, alicates, tesouras, cadeados, facas, gente chegando e saindo.
O roça-roça já passava de um mês, na verdade, um mês e quinze dias. Ela, porém, estava pra lá de seca, ele igualmente doido, descontrolado, subindo pelas paredes, trepando de costas. Mas o bem bom, o bem bom, nada.
- Vou ser dele. E vai ser no chão daquela bosta onde passa o dia...
A primeira investida, entretanto, falhou. Como a segunda, a sexta, a nona. Parecia que algo lutava contra. Surgia uma brecha, eles não perdiam tempo: se engalfinhavam um no outro. Todavia, no momento de partirem para os finalmente, pintava sujeira. Emília, então, teve uma idéia. Trancar a porta pelo lado de dentro e ficar abaixada, de joelhos. Quem chegasse só veria o Fábio da cintura para cima. Jamais alguém, em sã consciência desconfiaria que por debaixo do minúsculo balcão uma marinheira de primeira viagem se preparava para dar uma festa de arromba e deixar seu bem amado de queixo caído. Ou seria de saco vazio? Isso não vinha ao caso. O que importava era a festa, aliás, prometia ser inesquecível...
Aconteceu no sábado. Emília se posicionou no minúsculo compartimento disposta a se entregar aos prazeres do sexo e a fogosidade da carne fraca que lhe faziam tremer todas as partes do corpo. Havia nela um fanatismo instilado que a empurrava para frente, numa ansiedade descomedidamente irrefreável de perder a virgindade com aquele deus grego. Nesse prazer escrachadamente doido, faria o Fábio viajar até as nuvens, embalado e montado numa potranca de fogo, como vira num filme pornô que trouxera emprestado da casa de uma amiga da escola. Chegou uma freguesa. Emília, porém, não se fez de rogada. Ao diabo esperar mais. Abriu o zíper da calça do namorado. A jeans foi descendo até formar um amontoado de pano amassado. Fábio começou a trabalhar no alicate da madame. Emília, de repente, se viu frente a frente com a arma do crime colada em seu rosto. E bem perto de seus lábios ressequidos pelo prazer.
Fábio tinha um tremendo de um volume grosso que pulsava, irrequieto, dentro da cueca. Parecia a ponto de pular para fora e se aninhar em meio às mãos da namorada gulosa. Na verdade, o troço pulou mesmo. E esquentou. E o bicho pegou...
- Ai, ai...
A senhora que aguardava, recostada no parapeito do balcão, por um momento imaginou que o rapaz estivesse às portas de um piripaque.
- Você está se sentindo bem, meu filho?
- Sim... Estou... Estou quase...
- Quer que eu chame um médico? Nossa, meu querido, você está suando em bicas!... Ficou branco... Não, amarelo, Cruz em Credo!
- Ai, ai, engole... Sua vaca... Sua puta...
Sem entender o que se passava, ao ouvir essas palavras, ditas assim, sem mais nem menos, na lata, na bucha, a madame ficou braba. Virou bicho. Rodou a baiana.
- Pelo amor de Deus, meu amigo, que modos são esses? – gritou a posuda mulher – cenho franzido - nunca fui tratada dessa forma. Que falta de respeito! Acaso me chamou de vaca, de puta... E quer que eu engula... Engula o quê? Escuta aqui, seu pilantra. Não volto mais aqui. Nem eu nem minhas amigas. Passa pra cá meu alicate. Suspenda o serviço. Eu deveria chamar a polícia, seu mal educado, vagabundo, tarado...
- Não, senhora. Por favor, não é nada disso que está pensando. Eu estou falando com a... Ai, ai, aiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii!
Emília se despojou de todos os preconceitos e talantes clericais nos quais se criara desde pequena e mandou bala. Aquela altura, não mais volveria à lucidez. Num delirar sem conta enfiou na boca, de uma só vez, a chave que estava pendurada no meio das pernas de Fábio e a fez dar uma série de giros numa fechadura imaginável. Engoliu de forma tresloucada o pau do namorado com vontade e determinação. O troço grosso e quente parecia ter aumentado de intensidade, principalmente depois que fora colocado quase goela abaixo. De certa forma, esse gesto inesperado, atiçou a gula, despertou a fome e a libido. Afinal, ela estava no êmulo de sua fraqueza. Talvez o ineditismo da cena, o local, a posição, a forma como tudo acontecia, ajudava a criar um clima novo. Emilia literalmente agarrada feito uma possessa, no talo do rapaz, mesmo depois de tê-lo levado às nuvens, não parava de friccionar o pênis num vai e vem incessante. Em busca do “quero de novo”, voltou com a pica na posição inicial e começou a lambê-la -, primeiro com a ponta da língua -, depois enfiando inteira, sem pestanejar, a uma velocidade incontrolável.
O patrão de Fábio, um tal de Miguel das Chaves, chegou no exato minuto em que a dona do alicate, furiosa, voltava com dois policiais em meio a uma pequena multidão de curiosos. Gesticulava, muito braba, enquanto apontava o trailer.
- O Senhor é o dono dessa espelunca? Seu funcionariozinho ai...
Emília conseguira de novo. Fábio gozava pela segunda vez. Da sua maquina, ainda quente e turbinada, acabava de jorrar um jato branco muito forte, fazendo com que urrasse descontroladamente. De cócoras, Emília terminava de saborear o final do boquete, a substancia viciadora do pecado escorrendo pelas maças do rosto e parte da boca. Acabara de saciar seu desejo. Tudo como havia sonhado, ao fazer a sua escolha. Foi legal, mesmo em meio a uma superabundância de chaves velhas e alicates imprestáveis. O aríete de Fábio, aos poucos, foi entrando em estado de repouso. Parecia um pequeno botão de rosa pendendo para a esquerda e chorando uma reluzente lagrima de orvalho. A mão de Emilia, contudo, continuava dentro da calcinha. Ela teimava continuar fustigando os pequenos lábios. Enquanto engolia o sêmen quente do seu macho, gemia, gemia num crescendo, gemia com seguidas ondas de êxtase, como uma cadela no cio, tal como se estivesse fora de suas faculdades normais. De fato, estava!
O embasbacado do patrão, sem saber o que acontecia, tanto dentro como fora, destrancou a porta e entrou com tudo. Atrás dele, a galera pedia providências. O casal, surpreendido no flagra, foi posto no olho da rua. Não fossem os policiais, ambos teriam sido linchados. Uma semana após o acontecido, Miguel das Chaves ajustou, para ocupar a vaga de Fábio, um rapazola loirinho, muito alegre e simpático, que sorria como uma hiena e, claro, nas horas de folga, entre um alicate e a feitura de uma chave, quebrava os galhos chupando a vara do patrão.





















Cinco contra um
“Era uma vez um louco: Eu”
Pachá

O
LHAR PARA AS GATINHAS QUE PASSAM todas as manhãs embaixo da minha janela, com destino à escola pública, quase em frente da minha casa, instiga a minha libido terrorista. Se me fixar em seus traseiros mais afogueadamente, com certeza, terei uma ereção nos moldes das derrubadas das torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York. Geralmente essas inocentes espiadelas terminam ali mesmo, ocultas por detrás das cortinas, ou trancafiadas no banheiro, diante de um pôster gigante de alguma artista pornô, no cinco contra um, o que redundará num verdadeiro entulho de 250 mil toneladas de espermatozóides sendo ejaculados ao deus-dará. Recentemente descasquei uma banana prolongada para a Siri, nua em pêlo, numa revista feminina que roubei do meu vizinho que tem assinatura e, às vezes, demora para visitar a caixinha do correio. Me imaginei na pele do Alemão, com todo aquele material de primeira, ao alcance das mãos, esparramado numa cama redonda, com teto solar, piscina de água quente e outras diversões, longe dos curiosos, num desses flets espalhados por lugares deslumbrantemente exóticos.
Gosto, como todos os rapazes da minha idade, de apreciar as revistas de mulheres peladas. Devoro todas as publicações que me caem nas mãos. Faz um bem enorme avaliar as curvas perfeitas das modelos mais cobiçadas deste país. Nessas horas, sinto como se estivesse dentro de um carro, o pé atolado no acelerador, voando perigosamente em alta velocidade, por uma estrada sinuosa margeando uma serra cheia de curvas fatais. Ao meu lado, ajudando a dar vazão a esse quadro irreal, uma colegial (dessas que todos os dias passam rebolando na minha janela) com o rostinho de princesa lembrando, não a Siri do Alemão, mas a Ana Paula Oliveira, os cabelos longos e soltos à moda da paulistana Mônica Frutuoso. Enquanto seguro o volante, com a outra mão, enfio o dedo no pequeno triângulo que ela carrega escondido no meio das pernas, onde bem sei, existe um caminho secreto, encoberto por um invólucro minúsculo de nylon, levando meus devaneios às loucuras irascíveis do prazer.
Semanas atrás quase aconteceu um milagre. Só não foi completo... Acho melhor contar desde o começo para que a coisa fique bem clara e não reste duvidas a respeito da minha sanidade mental. Voltava do trabalho, quando à altura do Viaduto Maria Paula, tropecei com uma velha amiga, a Sandy, conhecida de longa data e que não encontrava pela frente fazia bom tempo. Conversa vai, conversa vem, consegui arrastar a moleca para um quarto de motel, na Praça da Sé. Por sorte, nesse dia, havia sobrado uns trocados no bolso. Mixaria, mas quebrava o galho. Entre um suco de manga e uns biscoitos amanteigados que compramos, ela resolveu ceder aos meus impulsos. Como a um telefone, me tirou, ou melhor, me arrancou do gancho. Tomamos um banho demorado, com ervas e sais afrodisíacos misturados a espumas aromáticas. A magia da sua presença inebriava o ambiente. Seu corpo, abrigo de vinte e cinco primaveras, tinha a sutileza de uma rima. Uma flagrância envolvente nos cabelos lhe corria pelos cachos dourados e terminava à altura exata onde a calcinha cor da pele encobria os dois lados do pecado. Cheguei a sentir o cheiro forte que ligava seus ciclos menstruais a lua. Ao deslizar a língua em seu traseiro, saboreei o doce gosto de mel que emanava da sua bundinha avantajada. Por breves minutos, me senti na pele de um rei poderoso, desfrutando de toda sua majestade intocável. Os móveis que compunham o quarto da espelunca onde estávamos, embora humildes e antigos, pareciam pequenos súditos reverenciando nossa felicidade. Na verdade, naquele momento mágico, me imaginava com autoridade absoluta diante daquele corpo escultural todinho a minha disposição. Uma verdadeira visão hipnótica.
Depois do banho, partimos para a cama. Sandy tirou de dentro da bolsa uma Sexi onde se via estampada às formas impecáveis da Sandra Alionço. Virando o rosto para meu lado segredou que gostaria de ser como a Paloma Duarte, sua atriz preferida. Revelou que igual a Kimberley Stanfield é cheerleader de um time de basquete do colégio onde cursa o sexto período da faculdade de comunicação e que, vez em quando, para ganhar uns trocadinhos, trabalha como acompanhante de um casal de idosos, no Tatuapé.
Por fim, anunciou que seu namorado – um negrão recém chegado do Senegal – disse para ela seguir a carreira de modelo. Jamais desperdiçar seu belo par de olhos azuis. Seria uma pena irreparável se isso acontecesse. Concordo plenamente com o sujeito. Não é todo mundo que enquadra um visual tão propício para a arte das passarelas: 1.67 de altura, 48 quilos, 86 centímetros de busto, 6l de cintura e 86 de quadris. Sandy, porém, está vivendo uma dúvida cruel. Ultimamente para ajudar nas despesas do apartamento que divide com mais algumas amigas, no Largo do Arouche, vem ganhando a vida como garota de programa (o que???) num movimentadíssimo apartamento na Rua Augusta. Garota de programa? Puta que pariu! Na minha santa ignorância, achei que havia levado uma eternidade enorme para arrastá-la comigo, até aquele cubículo imundo, de frente para as escadarias da Estação Sé do metrô.
- E aí, vamos partir para os finalmente – disse ela num dado momento da conversa - Tenho outros encontros, você sabe como é, né mesmo!...
Olhar para uma gatinha que passa na rua em direção a escola que fica aqui perto de casa agita, a olhos vistos, o meu lado animal. Foi assim quando revi a Sandy, depois de muitos anos, não sei exatamente quantos, mas isso não importa agora. Estar numa cama de hotel, com ela, ao alcance das mãos e de outras coisas me fez senhor absoluto de mim. Juro que, por alguns breves instantes, me senti como Príapo, filho de Baco e Vênus, que nasceu, segundo a história, com um pênis desproporcionalmente imenso...
Contudo, a revelação dela, ali, de cara limpa, (garota de programa?) - olhando bem dentro de meu coração desafortunado -, caiu como um balde de água fria -, misturado com cubos de gelo recém saídos de um imenso congelador. A ferramenta, símbolo da masculinidade deste pobre ser mortal, se tornou flácida, encolheu de medo e tamanho. Na verdade, o troço fugiu correndo para o esconderijo, ante a revelação nua e crua, mais crua que nua de Sandy. Então a desgranhenta safada, ordinária, se transformara numa prostitutazinha barata?! Meu Deus, quem diria, uma vulgar que ganhava a vida em troca de um punhado de moedas, a duras flexões em camas barulhentas de espeluncas baratas. Pintou, na moleira, uma série de pequenos fragmentos que redundou no esfriamento completo do apetite bestial.
De repente me vi enfiado numa espécie de almofada pegajosa, onde os bichanos dormem e sonham com gorduchos ratos de esgoto. Foi para os cambaus, meu milagre. Daí o quase. Claro, não teve clima. Sandy sentiu primeiro do que eu que os meus propósitos haviam perdido o tamanho e a intensidade.
Vestimos nossas roupas em meio a um silêncio constrangedor. Minutos depois, saímos cabisbaixos, como se tivéssemos medo ou vergonha, um do outro. Deixei a vadia em frente ao prédio do Fórum Cívil, onde acenou para um táxi. Na despedida, trocamos um beijo ríspido e vazio, sem sabor, um beijo maquinal. Ela cheirava a sexo barato. Só fui perceber depois que contou que era vagabunda!
O melhor que tenho a fazer é vigiar a revista pornô deste mês, que chega na caixinha do correio do meu vizinho. Os colegas da empresa onde trabalho, comentaram que uma das filhas do Antony Garotinho pintou mostrando tudo, nuazinha, nuazinha, em carne e osso, como saiu da barriga da mãe. Lembrando desse incidente com Sandy, e vendo uma porrada de gatinhas indo e vindo em direção à escola, vou partir em busca do esquisito pendurado no meio das pernas. Coitado! Ele que seja macho, que me endureça as feições e agüente a turminha de dedos que cairá em seus costados. Só espero, sinceramente, que na hora agá, não resolva fazer greve de porra!





















Persuasão

O
RAPAZ CHEGA PARA A NAMORADA E PROPÕE:
- Lígia, minha linda, estamos aqui sentados no interior deste carro, desde as oito horas da noite. São quase duas da manhã. Como pode ver, ninguém na rua. Que tal aquela chance?
- Qual, Julinho?
- De lhe fazer feliz por inteira.
- Mas sou completamente feliz, amor. Você me preenche todos os vazios.
- Ficaria mais satisfeito e realizado interiormente se fizéssemos amor.
- Não estou preparada.
- Namoramos há seis meses e...
- Eu sei, amor, mas não estou pronta. Entende o que eu digo? Não chegou o momento.
Julinho finge uma mágoa ensaiada. Bruscamente pede a Lígia que levante de seu colo e passe para o banco do carona.
- Você não gosta de mim como eu de você.
- Claro que gosto, amor. Eu te amo. E muito. Você sabe. Dou minha vida por nosso amor.
- Mas não dá o que realmente nos uniria de uma vez para sempre.
- Julinho, você só pensa em sexo. Seu negócio é transar, transar, transar. Quantas coisas bonitas tivemos a oportunidade de dizer um para o outro. Você tem me saído um verdadeiro poeta. Recita versos lindos, me enche de frases românticas... Sem falar nas cartas maravilhosas que escreve. Vamos dar mais um tempo. Nosso momento chegará. Pode ser amanhã, depois, ou...
- Ou nunca, Lígia. Para mim, chega. Tô fora.
- Julinho, eu te amo. Não seja tão radical. Já dei várias demonstrações de que você é o cara com quem quero me casar, ter filhos, construir uma vida, envelhecer...
- Faltou a principal.
- É tão importante essa prova?
- É.
- O que você quer?
- Preciso dizer?
- Meus pais...
Julinho abre a janela e aponta para a varanda enorme um pouco acima deles.
- Seus velhos estão numa boa. Quem sabe até em promoção de temporada.
- Promoção de temporada?
- Isso mesmo. Devem estar trabalhando na fabricação da raspa do tacho.
- Raspa do tacho? De onde você tirou essa maluquice, Julinho?
- Como você é ingênua. Raspa do tacho é o mesmo que bebê temporão, ou seja, aquele irmãozinho inesperado que chega para aumentar o clã familiar quando menos se espera.
Risos.
- Papai a essa altura do campeonato ronca a sono solto. Mamãe, coitada, deve andar pra lá de Bagdá.
- Sentiu o drama? Dormindo, quando deveriam estar numa boa.
- Amor, amanhã a gente continua o papo. Agora preciso subir.
- É cedo, gatinha.
- Amanhã eu...
- Amanhã é outro dia depois de hoje... E hoje é o nosso agora.
- Sofia subiu passava um pouco das dez. O Marco Aurélio idem. Só eu estou aqui.
O rapaz continua firme na sua determinação e parece que nada o demove a deixar a coisa para a noite seguinte.
- Escute o que vou dizer: entramos ali na garagem, só por alguns minutos. Juro que levo você às estrelas.
- Não vejo estrelas. O céu está escuro demais.
Julinho deixa a aparente magoa de lado e volta a abraçar a namorada. Beija-lhe carinhosamente a nuca e os seios.
- Deixa lhe mostrar essas estrelas.
Enquanto tenta quebrar as últimas resistências de Lígia, abre o porta luvas do carro e, de lá, retira uma caixinha.
- O que é?
- Abra e descubra.
Lígia, curiosa, obedece.
- Dois dadinhos?
- Na batata. Dois dadinhos.
- Para que servem? O que estão escritos neles?
- Calma princesa. Por etapas. Vamos até a garagem?
Enquanto fala, Julinho vai subindo vagarosamente a mão pelas pernas de Lígia. Seu coração bate descompassadamente. O dela falta pouco para saltar do peito. A mão do rapaz segue adiante, continua subindo, subindo, mais um pouco, galgando centímetro após centímetro. Lígia, quase sem fôlego está sem ar. O corpo treme. Sua pele sua. Entrementes, os dedos de Julinho bolinam na calcinha e, afoitos roçam a...
Lígia enlouquece. Explode a vontade da posse. A tentação desperta de seu sono acorda furiosa.
- Está bem. Venha comigo.
O casal sai do carro e entra no escuro da garagem.
- Que volume é esse no seu bolso?
- Uma lanterna.
- Para que você quer uma lanterna, Julinho?
- Vamos jogar dadinhos. É assim. Deixa eu te explicar. Na face que cair você deverá praticar o que estiver escrito.
- E o que é que estará escrito?
- Como vou saber? Você terá que jogar.
Os dois se acomodam num canto bem no fundo da peça ao lado do CITRÖEN dos pais de Lígia. Julinho tira a lanterna do bolso e procura, com o foco, um espaço livre, no chão.
- Aqui está legal. Chacoalhe os dados com uma das mãos e jogue, devagar.
A garota obedece.
- O que saiu escrito?
- Neste aqui, NA MESA. No outro, COM A PORTA ABERTA.
- Não valeu. De novo.
Lígia faz a segunda tentativa.
- E agora?
- No primeiro, AO AR LIVRE, no segundo, SEXO ORAL NELE.
- Ótimo. Vá em frente.
- O que? Eu!...
- Amor prove que me ama de verdade. São seis meses. Olhe só como estou por sua causa. Veja como você me deixa. Vamos, gatinha, aposto que vai gostar. E pedirá bis. Não dói.
Enquanto fala a criatura desce rapidamente as calças. Num piscar de olhos está de sunga, a camisa aberta.
- Tire fora. Olhe o que vou fazer.
Do bolso da camisa puxa um vidrinho pequeno.
- Nossa Senhora, Julinho, o que tem nesse trocinho?
- Calma, Lígia, isso aqui é Jelly Well.
- Jelly o quê?
- Gel corporal.
- Qual é a serventia?
- Vou passar na pontinha do... Do Juninho.
- Credo! Não vou agüentar esse negócio comprido e grosso dentro de mim. Esqueceu que sou virgem? Você sabe que nunca transei.
- E estou muito feliz por nós dois. Mas veja bem: não vamos introduzir o “Juninho” dentro de você. Inicialmente testaremos colocando o neném na sua boquinha. Obedeça aos dados. SEXO ORAL NELE. Experimente.
- Eu, eu...
- Deixa de conversa fiada. Sinta o sabor do gel na ponta da sua língua.
- Tenho nojo. Nunca fiz antes...
Todavia, diante de tanta e acirrada insistência (embora não suportasse mais esperar para ver como era a coisa) Lígia, meio sem jeito e ressabiada, começa a praticar sexo oral no namorado. Contudo, à medida que vai sorvendo o espesso membro, sente que seu organismo se descontrai e se desprende da tensão que até minutos atrás a atormentava.
- Chega... Que gosto horrível... Vou... Vou...
- Aiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii! Por quê parou? Merda, eu estava quase...
A donzela, desvairada, sai correndo e vomitando para todas as direções e, pior, deixando o namorado a ver navios e bolinhas coloridas no meio do aposento escuro, quase as três da manhã.
Dia seguinte, mesmo horário, mesmo lugar, à cena se repete.
- Jogue os dadinhos.
- Hoje é sua vez, gatinho. À vontade.
O rapaz cede.
- Saiu EM FRENTE AO ESPELHO e SEXO ANAL.
- Tudo bem. Vamos nos contentar só com o que temos. Não vou lá em cima buscar um espelho, a menos que você faça absoluta questão.
- Para mim, tudo bem. Faremos sem o espelho.
- Afinal de contas, amor, qual a função do espelho?
- Desfrutar melhor dos movimentos... Você adoraria ver o Juninho entrando no seu... Na sua bundinha. Dá uma sensação...
Risos.
- Pense que não faltará oportunidade. Talvez na próxima. A gente vem pra cá preparado e trás tudo que tem direito. A propósito, ia esquecendo: deixa te mostrar o que minha irmã Sofia me deu de presente antes de ir hoje cedo para o trabalho. Cadê a lanterna?
Lígia levantou o vestido e de dentro da calcinha retirou uma pequena latinha.
- Posso saber o que tem dentro desse recipiente?
- Calma. Dentro de alguns minutos matara a sua curiosidade. Agora senta aqui a meu lado e deixa te falar uma coisa. Contei tudo o que fizemos ontem a Sofia, ou melhor, o que tentamos e não conseguimos.
- Pó, você abriu pra sua irmã?
- Sim. Qual o problema?
- Jesus Cristo, estamos fritos.
- Relaxe, meu príncipe. Fique frio. Ela é sangue bom. Alias, me deu altos conselhos. Deixou bem clara a nossa situação. Maninha, vá em frente. Para segurar a onda e manter um homem embaixo dos seus pés, não espere, dê. Solte a franga. Mostre logo do que é capaz. Detalhe: ele vai chegar junto e te pedir uma comida básica no traseiro. A primeira vez dói pra caramba. Parece que as pregas estão sendo arrombadas e arrancadas ao mesmo tempo, por um estilete. Por mais carinhoso que o cara seja, enfiando o troco com jeitinho e usando de toda delicadeza, você ira no inferno e voltara umas trocentas vezes. Mas não se assuste. Depois acostuma. Na segunda metida, aposto que estará cabriolando no pau dele, tão carente, mas tão carente, quanto uma criança recém saída do gueto. Me deu isto e pediu que escondesse na calcinha.
- E o que é?
- Unta cu.
- Unta o quê?
- Deixe de conversa fiada. Você jogou os dadinhos, lembra? Pois trate de fazer o que está escrito neles.

















Explicações mal explicadas

M
AL E PORCAMENTE PANTOLFO CHEGOU DA RUA E SE ACOMODOU no sofá da sala para tirar os sapatos, o pequeno Luan, que assistia desenhos na Cartoon Network, desligou o aparelho e encarou o pai, muito sério.
- O senhor saberia me explicar quem nasceu primeiro? O homem ou a mulher?
- O homem.
- E a mulher?
- Veio de uma costela de Adão.
- E quem é Adão?
- O primeiro homem.
O garoto sentou ao lado do pai e cruzou as pernas como se fosse adulto.
- Foi?
- Isso.
- E onde ele está agora?
- Morto.
- Se ele está morto, como é que a mulher nasceu da costela dele?
- Obra de Deus, meu filho. Obra de Deus. Cadê sua mãe?
- Saiu com a Maria. Foram ao supermercado fazer compras.
- Seu irmãozinho?
- No parquinho com a babá. Pai tem um negócio que está me causando um monte de dúvidas? Será que o senhor...
- ...Se estiver ao meu alcance.
- Voltando a esse tal de Adão. O senhor falou que a mulher veio da costela dele. Se a mulher veio da costela desse tal de Adão, a mamãe saiu da sua costela?
- Não, filho. Mamãe e papai são diferentes.
- Diferentes? Como?
- Mamãe nasceu na casa de seu avô Tonico e de sua avó Simone.
- E o senhor?
- Eu vim da casa de vovô Anacleto e de vovó Custódia.
O moleque parecia absorto em pensamentos distantes.
- Pai, onde é que o vovô Tonico e a vovó Simone nasceram? E o vovô Anacleto mais a vovó Custódia, vieram do mesmo lugar?
Boquiaberto, Pantolfo não sabia o que responder. Precisava pensar rápido, inventar uma desculpa qualquer que satisfizesse a curiosidade do filho e o fizesse retornar aos desenhos.
- Todos eles vieram lá do céu, no bico de uma cegonha enorme.
- O senhor também veio no bico dessa cegonha?
- Como todo mundo...
- Pai, essa cegonha trás gente grande igual todo adulto ou só carrega criança do meu tamanho?
- Só criança do seu tamanho.
- No bico?
- No bico.
- E a criança não cai?
- Não, não cai. A cegonha é muito cuidadosa.
Luan começou a estalar os dedos das mãos, como fazia seu avô Anacleto. Parecia nervoso e preocupado. Aliás, estava. E muito.
- Pai, meu irmão Lucas veio no bico dessa cegonha?
- Veio. E pousou bem ai nos fundos do quintal.
- Que troço mais esquisito!...
- O que é esquisito, filho?
- Se for mesmo a cegonha quem trás as crianças como é que o Lucas saiu da barriga da mamãe e nasceu na maternidade? Será que a cegonha errou de endereço?
Pantolfo abriu a boca e franziu o cenho diante dessas revelações. Para ele, até então, o guri não passava de uma criança com o espírito embebido na aventura da idade e estava só querendo conhecer um pouco mais da vida. Todavia, a história da barriga e da maternidade mexeu fundo com sua cabeça.
- Quem falou que o Lucas saiu da barriga da mamãe e nasceu na maternidade?
- O padre.
- Padre? Que padre?
- Padre Gregório.
- Quem levou você a esse tal de padre Gregório?
- Tia Elaine.
- Quando?
- Não sei.
- Não sabe?
- Acho que “era” ontem.
Risos.
- Sua mãe acompanhou vocês?
- Não. Mamãe parou na padaria.
- Na padaria?
- É pai. Ela disse à tia Elaine que iria comprar uns trecos: ovos, pão de forma, manteiga, não sei mais o que e fermento.
- Fermento? Para que sua mãe precisa de fermento?
- Acho que é para pôr na torta que vai fazer para tia Vânia.
- Torta para tia Vânia?
- Ele vai fazer aniversário, esqueceu? Mamãe está preparando uma torta de surpresa. Eu e tia Elaine fomos até a paróquia convidar o padre.
- Mmmmmmm!...
- Pai, o padre Gregório é mulher?
- Não conheço pessoalmente o padre Gregório, filho, mas por tudo quanto é mais sagrado, de onde você tirou essa idéia?
- Ele não usa uma saia preta e comprida?
- Todos os padres usam. De mais a mais, aquilo não é saia. É batina.
- Mamãe usa batina?
- Sua mãe usa saia.
- E tia Elaine usa batina?
- Saia.
- E tia Vânia?
- Saia. Todas usam saia. A Maria, a babá de seu irmão, sua avó...
- Por que os padres usam batina e não vestem calça? O senhor não acha que tia Elaine e tia Vânia ficariam mais bonitas se usassem uma batina igual a do padre Gregório? Ou vice-versa? O senhor teria coragem de usar batina, ou uma saia bem curta igual a da Maria, nossa empregada?
Pantolfo começava a mostrar sinais de irritação e impaciência. O moleque queria saber demais, e a uma velocidade vertiginosa. Torrava a paciência. Principalmente depois de um dia estafante e cheio de encrencas no escritório da companhia. Teve uma idéia.
- Filho, você não quer chupar um sorvete?
- De morango ou de abacaxi?
- Você escolhe o sabor que melhor que aprouver.
- Melhor o quê?
- Agradar. Melhor lhe der satisfação.
Luan, contudo, não se fez de rogado. Voltou à bateria de perguntas.
- Pai, como é o nome da primeira mulher?
- Eva.
- Eva?
- Eva.
- Gozado! O senhor não vai acreditar. Ela mora ali embaixo, depois da pracinha, perto do açougue. É a mãe do Funchal.
- Mãe... Mãe de quem?
- Do Funchal, um colega meu. Estuda comigo. A gente senta um ao lado do outro.
- Filho, essa Eva é outra. Não é a que saiu da costela de Adão.
- Como é que essa outra Eva conseguiu sair da costela desse tal de Adão?
- Já disse: ela não saiu...
- O senhor não acabou de falar que a Eva saiu da costela de Adão?
- Sim.
- Então?
Pantolfo colocou as mãos em concha no rosto miúdo do garoto e tentou parecer calmo. Por dentro, entretanto estava uma pilha.
- Lembro que estávamos comentando a respeito da primeira mulher, não da mãe de seu amiguinho aí... Como é mesmo o nome?
- Funchal.
- Claro, Funchal. Que nome.
Luan continuava disposto a não dar tréguas.
- Pai, o que é costela?
Em resposta o pobre e cansado pai arrancou do bolso uma nota de dez reais e a balançou no ar.
- Olha só. Vamos gastar tudo em sorvete?
- O senhor não respondeu: costela, o que é costela?
- Está bem. Você ganhou. Costela, ou melhor, costelas, são esses ossos que temos aqui nas costas.
No que falava, Pantolfo se posicionou de lado e, com o braço esquerdo, tentou indicar as vértebras à linha média no ventral do tronco.
- Está vendo?
- Não senhor.
- Tudo bem. Vamos voltar ao sorvete? Você falou em morango e abacaxi...
O menino, porém, andava longe.
- Droga! Agora acho que “pirei”...
Pela segunda vez Pantolfo voltou a arregalar os olhos. Fixou o rosto do filho como nunca havia feito até então. Não queria acreditar no que acabara de ouvir.
- Acha que o quê?
- Pirei...
- Explique “pirei”.
- Todos os meus amiguinhos da escola falam: pirei quando vi a professora levantando a calcinha no banheiro, pirei quando minha madrasta chegou e me pegou batendo uma punheta. Pirei quando o diretor me pegou mijando, de pau duro, na parede da secretaria...
- E no seu caso, como é que você acha que pirou?
- Tio Léo veio dormir aqui em casa quando o senhor viajou.
- E dai?
- Trouxe com ele a tia Berenice. Eu escutei os dois conversando lá no quarto da Maria. Tio Léo disse e mamãe também ouviu quando ele falou que a tia Berenice era a costela dele. Tia Berenice saiu da costela do tio Léo, pai?
O telefone tocou. Pantolfo quase à beira de um ataque de nervos (não tinha mais saída para tantas perguntas e, sobretudo, empombado com a sagacidade e a inteligência do primogênito), deu um pulo do sofá e correu atender. Graças a Deus havia sido salvo pelo gongo. Mais um bloco de perguntas e entraria em pânico. Do outro lado da linha alguém procurava pelo Luan.
- É seu amigo navio.
O pequeno franziu o cenho.
- Meu amigo navio? Eu não tenho nenhum amigo navio, pai.
O infeliz levou as mãos à cabeça. Não sabia mais o que fazer, ou dizer. Na verdade, sua vontade se constituía numa só: arrancar os poucos fios de cabelo e sair correndo feito um louco pelo meio da rua. Optou por gritar o nome do coleguinha e pronto. Assunto encerrado.
- Funchal, Funchal. É o Funchal...
- E por que o senhor chamou meu amigo Funchal de navio?
Teve vontade de explicar ao sapeca que Funchal era um transatlântico que ele vira atracado no porto, quando voltava para casa. E, coincidentemente, seu amiguinho tinha o mesmo nome desse navio. Conteve o ímpeto a tempo. Sabia, de antemão, que as explicações, se as fosse dar, não se restringiriam só a isso.
- Escuta aqui, seu espertinho. Atenda ao telefone e deixe de conversa fiada. Vou lá fora comprar cigarros.
- Cigarros? Para quem? O senhor não fuma!... E o meu sorvete? Cadê o dinheiro que o senhor tirou do bolso e ia me dar para comprar sorvete?























































Anjo noturno


Bernardo Fede Chulé sabia quando a vizinha gostosona do 301 estava em casa. Morava no 201, o que lhe proporcionava, na pacífica contemplação dos sons produzidos por ela, uma viagem ao faz de conta onde meditações bucólicas embaraçavam sua alma de homem solitário. De repente se via no meio da cena, como se estivesse lá em cima, ao lado dela, igual um poeta sentado e embevecido com o sussurro das árvores docemente agitadas pelo calmo sibilar do vento.
A misteriosa moradora - dona de um corpo escultural e perfeito - reunia todos os encantos do ser ideal com os quais qualquer sujeito normal sonharia. Em razão disso, Bernardo Fede Chulé se tornou perdidamente apaixonado. Uma paixão delirante, inconseqüente, inexplicável, que impregnava nas paredes pequenos nuances de senilidade misturados com momentos de furor e de ciúme mesclados com pitadas de reviravoltas de ternura e lágrimas.
A linda chegava sempre por volta das 5 horas da manhã. Estivesse dormindo ou não, ele acordava com o barulho dos sapatos dela nos degraus. Moravam, ambos, num prédio antigo, de três andares onde se acessava as residências por uma escada de corrimão amarelo. Logo que entrava em casa a jovem ia ao banheiro. Ouvia a tampa da privada sendo abaixada às pressas e, depois, a descarga acionada. Em seguida ela se dirigia para o quarto. Livrava os pés dos sapatos altos e os toc, toc, toc, toc, contra o piso de cerâmica cessavam. Abria algum tipo de guarda-roupas ou algo semelhante, o que produzia um diálogo rústico entre o ato de ser aberto e o ranger das dobradiças como o de um gato assustado soltando um miado fora de tom.
Bernardo Fede Chulé imaginava, a partir desse instante, que ela se despia completamente das roupas usuais. Tinha início uma série de andanças calmas e suaves como o de um desabrochar de flores. Naturalmente a catita circulava nua, ou só de calcinha. Tudo não passava de simples deduções devido à convivência, o apuro dos ouvidos e a meticulosidade nas observações. Do quarto ela entrava no banho. Abria a torneira. Sobressaiam, então, os ruídos da porta do box sendo acionada, do chuveiro quente ligado e da água escorrendo pelo ralo. O fragor desse asseio corporal durava meia hora, quarenta minutos, às vezes mais. Outros estalidos de menor importância vinham em auxílio das repetições desses sons, até que inesperadamente se tornavam fracos como se a donzela sumisse em pleno ar. Mas não. Em meio ao curto silêncio, ela logo dava sinais de que estava lá, bem viva e esvoaçante. Ligava a televisão. Vozes e tiros, gemidos e berros substituíam a calmaria reinante. Ela surfava nos canais à procura de algo que preenchesse vazios ou espantasse a solidão.
O passeio durava um segundo. Logo esquecia o controle e se atinha ao reprodutor de cds. A voz adocicada de Ana Carolina (ela adorava Ana Carolina) tomava conta do ar, se misturava à magia da quase manhã, perdia a timidez e saia pela janela como leve brisa balouçando ao acaso. Bernardo Fede Chulé, embalado por essa tranqüilidade inabitual e, inebriado pela voz da intérprete, dava a seus devaneios uma cor risonha, saia literalmente do chão, como se flutuasse. Voltava à vida quando os ponteiros do relógio passavam das duas da tarde.
Uma bela madrugada, por volta das quatro da matina, ele acordou com passos diferentes no corredor. Não os dela, mas de alguém oposto aos hábitos e costumes a que estava acostumado. Apurou os sentidos. Ouviu, então, a voz grave de um homem e tal constatação bastou para lhe fazer mergulhar em horríveis visões. Seu mundo caiu. Desmoronou, veio a baixo. A sedutora moradora do 301, realmente, trouxera consigo um estranja à tira colo. Estava patente a sua presença no pedaço e, por mais que quisesse, não poderia simplesmente fazer de conta que não se importava. Deixar a coisa pra lá, meter o travesseiro sobre o rosto e tentar conciliar o sono, bem sabia, seria humanamente impossível.
Afinal, de onde vinha esse cuidado sem razão, por que, essa preocupação descomedida com a moça? Não era nada sua, nem um simples laço de amizade mantinha com ela. Que ganharia se metendo em sua vida? Sabia que a ocupante do apartamento acima do seu se assemelhava a uma dessas deusas hollyhoodana só vista nos cinemas, e daí? Vezes sem conta forçara encontros, contudo, nesses instantes trocavam apenas ligeiros “olas” insossos e, uma vez, uma somente, num desses esbarros fugidios, ela lhe dirigiu um sorriso seco e sem a indicação de que pretendia manter amizade duradoura ou qualquer coisa equivalente.
Entretanto, nesse dia, a ida daquela graciosa para a cama, com o tal sujeito que viera com ela, avançou para seus tímpanos como um cortejo melodramático aos sons de uma canção sombria e brutal. Não a de Ana Carolina, mas uma melodia simultaneamente dura e solene, onde se misturava o pensamento fixo enroscado nos dois abraçados, atarracados quem sabe, num beijo, rolando, por certo, sobre os lençóis e os gritos de prazer daquela fêmea, durante o ato e, após, saciada pelo apogeu do gozo supremo, o descanso merecido. Essa loucura aparentemente infantil fez com que seus pensamentos desordenados explodissem em ondas de um frenesi impetuoso.
Bernardo Fede Chulé se viu em meio a uma multidão horrorosa, como se tivesse sido atirado à sanha de monstros de toda espécie reunidos ao seu redor. Ao quadro lúgubre, se juntaram barulhos ensurdecedores, gemidos, gargalhadas, gritos e urros distantes que outros tantos pareciam responder. A formosa do 301, a partir desse momento, perdera, para ele, seu caráter de nobreza. Deixou de ser a princesa que morava em um castelo de mimos dentro de seu coração desafortunado e vazio para se transformar numa figura ignóbil e grotesca.
Bernardo Fede Chulé resolveu que era hora de esquecê-la de vez. Para sempre. Colocar uma pedra enorme em cima. Assim pensando, caminhou até o frízer, abriu uma cerveja bem gelada, estourou umas pipocas no micro ondas e botou um pornô pra rolar. Na sala, diante do aparelho de dvd, para não ficar na mão e a ver navios, fartou os desejos incontidos, ressentidos, num cinco contra um em homenagem (não a menina do 301), à musa graciosa que brilhantemente coadjuvava no filme.




















































Demônios eternos

Q
UANDO EU ERA PEQUENO, TINHA UM MEDO terrível da Cuca, que vovô João, dizia a toda hora, viria me pegar, se eu fizesse alguma coisa errada e me levaria dentro de um saco preto para um lugar muito distante. E eu fazia muita coisa errada, porque era criança e criança não tem o discernimento das pessoas adultas, de saber distinguir o que é certo e o que é errado, de diferenciar entre o feio e o ridículo, ou de separar o bem e o mal, como o joio do trigo. E fazendo coisas erradas, entrava na “bainha do facão”, uma espécie de protetor de couro duro onde vovô João guardava um facão enorme, usado para cortar cana na vendinha onde comercializava pasteis, quibes, coxinhas e caldo de cana. Essa bainha de facão odiosa entrava em cena quando eu o tirava do sério. Se transformava, de repente, numa espécie de cinto que comia sem dó nem piedade por cima do lombo.
Lembro que vovó Marta acordava muito cedo para fritar uma porção de salgados, (já preparados na véspera) para, às sete horas em ponto, a pequena portinha de ferro estar escancarada ao publico e vovô João aumentar o volume dos seus trocados nos bolsos.
Morávamos em frente a um grupo escolar, onde, aliás, eu também estudava, na parte da tarde. Na hora do recreio, o velho Airão abria a porta de madeira. Um bando de meninos e meninas, entre afoitos e alegres, corria a atravessar a rua movimentada para pegar um lugarzinho melhor na vendinha de meus avós. A maioria da garotada ficava do lado de fora, comendo sentada na calçada, porque não cabia todo mundo lá dentro. À noite, na hora que fechavam, os dois velhinhos faziam a festa, e antes de ser servido o jantar, ficavam num canto do quarto contando um amontoado de moedinhas. Depois separavam cada uma pelo seu valor correspondente e depositavam em pequenas latas de leite em pó. Só então, depois de cumprido esse ritual, os dois se separavam. Vovô ia esconder o dinheiro atrás de uma velha estante, que havia no quarto do casal e vovó Marta seguia para a cozinha, para preparar o jantar. Geralmente a última refeição se constituía numa suculenta panela de sopa com os mais variados tipos de legumes.
Mas a tal da Cuca, meu Deus, essa praga povoava meus dias de manhã à noite. Seguia meu rastro pelos corredores, se fazia presente na sala de aula, me vigiava pelas esquinas e estava sempre por perto, preste a dar o bote e me matar. O Orlando, um amiguinho meu, que estudava na sala ao lado, era paralítico, se movimentava com a ajuda de dois paus de arrimo e praticamente todos os dias, quando tocava a campainha para o intervalo, costumávamos trocar o lanche das nossas lancheiras. Ele falava, com o rosto tomado pelo pavor, que na sua casa havia um bicho “danado de medonho”, que seus pais diziam que se não estudasse direito e repetisse o ano, ele seria entregue tão logo soubessem da notícia pelo boletim. Era o Saci Pererê, um menino mal encarado, filho do demônio, que andava pulando numa perna só e fumava um cachimbo comprido cheirando a enxofre. Com a Aninha, uma outra coleguinha de classe (que sentava do meu lado direito) não acontecia diferente. Aninha morava com uma tia chata, de cabelos avermelhados, duas casas abaixo da minha. Não tinha mãe nem pai. Eles morreram quando atravessavam o leito da via férrea, num acidente horrível, envolvendo o carro de passeio onde viajavam e o Litorânea, um trem expresso, de passageiros, que cruzava a cidade, tarde da noite, vindo da capital, com destino ao interior. O bicho da Aninha era o Boi da Cara Preta. A simples menção desse troço a deixava em pânico, aos prantos e em estado de choque.
Porém, o tempo passou. A infância cedeu lugar ao mundo adulto. Cresci, virei gente grande. Casei. Arranjei um monte de filhos. Hoje, olhando para eles, percebo que a mesma história dos tempos dos meus avós, das tias e dos pais dos meus amiguinhos de infância continuam se repetindo, indefinidamente. E com certeza, serão eternos, movidos pelo medo e pelo ressentimento que cada um carrega dentro de si. Serão imortais esses maus nascidos, alimentados pelas línguas dos nossos entes queridos e amados, que ainda conseguem ressuscitar e fazer desses demônios, bichos de aparências indescritíveis, com sete cabeças e mil braços, invencíveis e indestrutíveis como os fantasmas iracundos que estão dentro de nossos corações.
A Cuca não pega, o Boi da Cara Preta não assusta nem leva ninguém para lugar algum. Tampouco o Saci Pererê, e tantos outros...
Nada disso existe. Esses seres inexpressivos são figuras mitológicas, sem alma, frutos de mentes doentias que lhes deram vida e forma, movidos por uma imaginação tacanha. O nosso medo bobo, por eles todos, está bem aqui dentro do peito, escondido, pronto para entrar em cena a qualquer momento. Eu sou a Cuca, o Orlando o Boi da Cara Preta, a Aninha o Saci, ou vice-versa. Nós próprios criamos um receio que não existe e vivemos com ele, como se fosse uma doença incurável, para o resto de nossas vidas. A Cuca, definitivamente não estará, jamais, espreitando quem quer que seja, no final do corredor, nem o Saci Pererê entrará por uma janela que ficou aberta, como igualmente o Boi da Cara Preta não correrá, desembestado, em volta da casa, intencionado em levar, com ele, preso aos chifres, uma menininha linda que não quis dormir de luz apagada. A escuridão sombria é o pavor medonho do nosso quarto. Somos nós mesmos, idiotas petrificados, refletidos no espelho do nosso terror. Como a luz benigna que se acende, também vem de dentro de nós e se espalha como o sol bonito lá fora, por todo o infinito que o Criador nos deu de presente. Esses demônios todos têm a vida que lhes damos e respiram o ar que colocamos em suas narinas. Como fazia vovô João. Por isso, essas criaturas se movimentam segundo nossas vontades. Esses bichos-papões que andam, à solta, pelos becos e guetos de nosso dia-a-dia, a amedrontar, hoje, nossos filhos, e amanhã, e certamente depois, tirarão o sossego e o fôlego de nossos netos e bisnetos, estão e estarão vivos dentro de cada um que os queira alimentar. Estão presentes em nosso caminho, como aquela gigantesca árvore do mal fazendo uma sombra escura cair, pesada, por sobre nosso futuro. Precisamos, pois, cortá-la, para que não tenha mais vida plena. Arrancar, de uma vez, a raiz maligna que nasce do centro da nossa alma e brota, como se tivesse mil tendões. Exorcizar esses demônios de maneira que só restem deles, uma lembrança longínqua, esquecida, apagada, atenuada para sempre, num canto ermo da nossa memória.



















Golpe de mestre

O
MENINO ENGRAXAVA SAPATOS NO CENTRO DA cidade e naquele momento cruzava a ponte voltando para casa com sua caixinha debaixo do braço. De repente seus olhos argutos e muito vivos avistaram a peça que descia rio abaixo, ao sabor do vento morno da tarde ensolarada. Como um doido danou a correr enquanto gritava para o pessoal que bebia cerveja na birosca do Waldemar, em torno de um outro grupinho que tocava cavaco, surdo, reco-reco e pandeiro:
- O sofá, o sofá, venham ver, o sofá!...
A rapaziada se pôs de pé e acorreu para onde o moleque apontava o precioso achado. Em pouco tempo, uma multidão de moradores da Favela do Elefante, ao ouvir a gritaria e perceber o corre-corre, engrossou a massa dos curiosos. Era assim: qualquer novidade mudava o quadro daquelas famílias humildes. Num abrir e fechar de olhos, o cotidiano de cada um saia do marasmo e explodia para uma espécie de alvoroço inusitado. A miséria se escondia num canto e em seu lugar nascia o momento mágico do irreal e do ilógico. Saídos de ruelas e becos os mais diversos, homens de bicicleta e sem camisa, mulheres com crianças no colo e agarradas às barras de seus vestidos imundos, paravam os afazeres. Até os comerciantes cerravam as portas de suas vendas e lojinhas para se juntarem à raia miúda que, em polvorosa, se acotovelava em fila tripla, espalhada por toda a extensão ribeirinha com a finalidade de bisbilhotar o que o rio trazia em seu leito.
Misturado em meio a tubos de óleo, pedaços de sacolas, sacos plásticos, latas de cerveja e refrigerante, garrafas descartáveis, restos de acampamentos e piqueniques, lá vinha, boiando, meio capenga, o enorme sofá vermelho de curvim. Nessas alturas alguém lembrou de chamar o Rubião Mathias, líder comunitário que junto com um vereador local e um representante do prefeito faziam um trabalho voluntário exatamente no sentido de conscientizar os cidadãos da periferia a não jogarem dejetos no velho rio que às vezes dava a impressão de estar morrendo em lenta agonia. Mas não estava. Quando chovia por muitas horas, a favela virava um inferno. Se o temporal perdurasse por muitas horas, as águas subiam acima do nível normal, atravessavam o asfalto, engarrafavam o trânsito, invadiam os barracos e muitas vezes deixavam famílias inteiras ao desabrigo. Afora o desespero de perderem o pouco que possuíam, a tragédia, nessas ocasiões, não vinha sozinha. Trazia, consigo, a desgraça e a incerteza de um amanhã cheio de dores. A maioria das cabeças-de-porco que ocupavam praticamente todo o terreno no qual se fundava o vilarejo dos casebres, eram construídas com caixas de papelão, depois envoltas em plásticos e cobertas com folhas de zinco. Muitas vezes essas construções precárias não resistiam ao temporal e, em conseqüência, vinham abaixo e com eles à desgraça de alguém aparecer morto, porque na hora precisa, (tentando resgatar um aparelho de tv, roupas de cama e até comida) não atinavam com o bom senso de largar tudo e escapar a tempo de salvar a pele. Mas nesse dia não havia chovido. O dia transcorrera calmo e sossegado. O rio apresentava um curso coberto por uma película oleosa, onde uma variedade de microorganismos perigosos deveriam estar proliferando a céu aberto. Sem contar nos cinco milhões de metros cúbicos de sedimento, lixos e efluentes de esgotos industriais e domésticos, bem ainda coliformes fecais e descargas de outros afluentes que terminavam se juntando a ele, a rotina seguia sua seqüência normal.
Não fosse, igualmente o pestinha ter dado o alarme, a favela findaria o resto da tarde em clima de total tranqüilidade:
- O Sofá, o sofá. Venham ver!...
O que teria de tão extraordinário naquele cacareco mal-ajambrado para movimentar uma centena de desocupados e vadios em torno de sua presença? Por que a favela em peso se levantou num salto gigantesco para lhe colocar os olhos em cima? Não era apenas um velho móvel vermelho de curvim? Que estranho mistério o envolvia?
As respostas estavam num fato acontecido algumas semanas atrás. Um traficante conhecido como “Chiquinho Fumaça” havia sido preso junto com seu bando num arrastão que a policia fizera, sem aviso, em sua brejada. Os representantes da lei, contudo, não encontraram nada do que procuravam, ou seja, cocaína, pedras de craque e maconha. O “Chiquinho” comandava uma boca de fumo da pesada no coração da favela, mas na hora do “pega prá capar”, não havia nada que o incriminasse. O sujeito parecia ter trato com o coisa ruim. Algumas horas antes de ser levado para a carceragem, como que adivinhando e antevendo os acontecimentos, operou um processo de “engravidamento” no sofá, ou seja, acondicionou tudo que se relacionava ao seu comércio ilegal numa espécie de fundo falso, bem camuflado. Contratou um carroceiro de fora da favela e transportou o “material”, incluindo dinheiro, jóias e uma boa quantia de dólares para a casa de uma de suas amantes que morava numa outra favela, não muito distante, também por coincidência, à beira do mesmo rio e, cujo endereço até o próprio diabo desconhecia. O interessante, nessa história, é que a moça que receberia o sofá sabia que o companheiro vivia às margens da lei, contudo, não atinava com o segredo valioso que ele escondia dentro de si.
Na segunda noite, contudo, o inesperado aconteceu. O “Chiquinho” apareceu enforcado misteriosamente em sua cela. Sua morte foi comentada em todos os jornais e programas de televisão. A amante, logo que soube dos fatos, e temerosa de sobrar uns respaldos de encrenca, resolveu ir embora da cidade. Fez as malas e antes de abandonar, de vez, o barraco, achou por bem “dispensar” o sofá, atirando o ao rio.
Quando a noticia da morte de “Chiquinho” se espalhou pela favela do Elefante, muita gente, na calada da noite, resolveu tomar posse dos bens do falecido. Todos sabiam que o camarada tinha culpa no cartório. Só não sabiam como os homens da lei não o haviam flagrado com a boca na botija. Em meio a tanto disse-disse, a vizinhança e os próprios colegas, por unanimidade, concluíram que o espertalhão havia “enxertado”, de alguma forma, o velho sofá vermelho de curvim e sumido com ele, sabe Deus, para onde. A prova disso é que a policia ficou a ver navios...
Depois de alguns dias, caso passado, outros investigadores retornaram à favela a fazer perguntas. Claro que uma pá de gente lembrou do carroceiro e da carroça fretada. Claro que uma pá de gente chegou a ver, realmente, o sofá vermelho saindo, numa boa. Porém, nesses lugares, ainda impera a lei do silêncio. Conclusão: mesmo que algum idiota tivesse visto ou presenciado qualquer tipo de manobra estranha, faria, com certeza, vistas grossas, ou colocaria um zíper na língua para não ser assassinado e amanhecer com a boca cheia de formigas.
Mas na tarde daquele dia, a porra do menino voltava da cidade, onde trabalhava engraxando sapatos. De repente, no meio da ponte, seus olhos argutos e muito vivos avistaram a peça que descia rio abaixo, ao sabor do vento morno da tarde ensolarada:
- O sofá venham ver. O sofá do Chiquinho está vindo ali, venham, venham depressa...































Foi tudo culpa da pia

T
ENHO UM AMIGO COMUM, O PEDRA NA VESICULA que, impreterivelmente, nos finais de semana, não deixa de beber a sua cachaça. Chova ou faça sol, haja algo ou não para comemorar, lá está ele, fiel a sua companheira.
Outro dia, ao socorrer uma jovem que fora atropelada no trânsito, fui parar, quase as duas da madrugada, num pronto socorro desta cidade. Para surpresa minha quem não encontro na recepção, com a cara toda arrebentada preenchendo uma ficha para ser atendido? Ele mesmo, Pedra na Vesícula. Entre espantado e boquiaberto (ou mais boquiaberto e desesperado pelo fato de ter me visto), lhe perguntei, de chofre, o que havia acontecido. Meio estonteado e titubeante, na verdade mais para lá do que para cá, o coitado explicou com uma voz bastante rouca:
- Foi a pia. Se estou aqui, agora, neste estado lastimável que você está presenciando, agradeço a ela. Unicamente a ela.
- A pia? Mas que pia?
- Pelo amor de Deus, Barbosinha. Você não sabe o que é uma pia?
- Claro que sei o que é uma pia. Mas que relação pode haver entre uma pia e esse seu estado deplorável?
- Vou tentar explicar. Como sempre faço, depois do serviço, passo na birosca do Aleijadinho. Tomo umas geladinhas com alguns amigos de copo para calibrar o organismo debilitado. Depois de algumas boas rodadas, acabo de chegar no lar doce lar. Entro direto para o banho, janto, vejo um pouco de novela na televisão e então vou para um quartinho que tenho nos fundos. Não sei se você sabe, mas eu construí um cômodo nos fundos lá de casa. Na verdade, fiz uma puxadinha para a Narcisa, minha filha, que vai casar até o final deste ano. Lembra da Narcisinha?
- Mais ou menos. Quero saber da tal história da pia. Não enrola e conta logo.
- Calma, homem, eu chego lá. Como estava dizendo, me dirigi para o quartinho. Sempre que resolvo “embriagar” os ossos, encharcar a alma, me desligar dos problemas, me tranco nesse aposento e “meto bronca”. Bebo até o copo fazer bico e a garrafa pedir arrego. Minha mulher, a Rita, que você já conhece, não aprova a idéia. Aliás, ela odeia quando bebo alguma coisa, mesmo que seja uma xícara de café. Acredito até que pretendia “tirar uma” e eu não estava muito afim. Não é todo dia que você está com vontade de “dar no coro”, e esquentar aquelas partes secretas, não é mesmo? Conclusão: a filha da mãe da mulher me pegou de porrada e a coisa acabou nesse quadro que o companheiro está vendo com os próprios olhos.
- Mas espera lá. Você não falou que não foi a Ritinha?
- De fato.
- Então?
- As “cacetadas” que a Ritinha me deu, você sabe, não fizeram nem cosquinha. De mais a mais, tapinhas de amor não doem. A culpa realmente foi da droga da pia.
- Está bem, quero explicação. Sou todo ouvidos.
- Vou procurar ser o mais claro possível. Na verdade, tenho sempre em casa, dez ou doze garrafas de aguardente, da “boa”. Coisa de primeira. Acontece que a Ritinha bateu na porta do quartinho e me chamou para ir deitar. Iniciamos uma pequena discussão. Entre tapas e beijos ela resolveu medir as forças e avançou, resoluta para cima de mim, de cabo de vassoura e me obrigou a jogar as garrafas fora. Imagine...
- Você não obedeceu, não é mesmo?
- Nem poderia. Como já estava grogue, ou para lá de Bagdá, peguei a primeira garrafa, bebi um copo e joguei o resto na pia...
- Continue.
- Peguei a segunda garrafa, bebi outro copo e joguei, também, o que havia sobrado dela, na pia. Parti para a terceira garrafa e aí fiz o seguinte: mandei para dentro o resto da água que os passarinhos não bebem e joguei o copo na pia. Voou vidro para tudo quanto é lado. Com a quarta garrafa não foi diferente. Bebi na pia e joguei o resto no copo...
- Como é que é?
- Você já vai entender: na quinta garrafa, eu peguei uma tigela cheia de tira-gosto e atirei para o cachorro.
- Para o cachorro?
- É. Mas ele não estava a fim. Deu uma cheirada básica e foi embora. Meu cachorro não se dá bem com o cuminho. Depois disso, eu joguei uma tampinha nos cornos da Ritinha. Ela fica puta da vida, perde o juízo, quando eu atiro uma tampinha no seu rosto. Não sei o que tem contra as tampinhas. Acredito que seja trauma de infância. O pai dela, que já morreu, meu sogro, que Deus o tenha, trabalhava numa fabrica de rolhas. Pois então. Enquanto ela se desvencilhava da tampinha, eu aproveitei e ingeri, de uma só vez, toda a bagaceira. Depois, passei a mão na sexta garrafa, meu chapa. Corri para a pia, corri com vontade e, antes de chegar nela, bebi seu conteúdo. Bebi na moral, sem ao menos respirar. Ato contínuo joguei o copo no resto.
- O quê?
- O copo no resto, cara. Joguei o copo no resto. É difícil entender o meu papo?
- Vá em frente...
- A sétima, meu prezado, peguei no resto, enfiei o dedo nos olhos da nossa empregada, a Lucrecinha, que veio correndo, quando se apercebeu do bafafá comendo solto e, antes dela me xingar todinho, bebi a pia.
- Bebeu, bebeu a pia?
- Isso mesmo. Na seguinte, nem lhe conto! Que loucura! Passei a mão no copo, arranquei a pia do lugar e a arremessei com tudo, contra a nona garrafa. O troço caiu no chão e explodiu como uma bomba, dessas caseiras.
- Você ficou louco? Pirou de vez?
- Calma, deixa eu acabar de concluir.
- Ta legal. Prometo não interromper mais.
- Pois bem. Por derradeiro, joguei a décima garrafa no copo, tropecei na décima primeira e me atirei, incontinente (enquanto segurava a décima segunda garrafa debaixo dos braços), de cabeça, na pia.


















Gêmeas

B
ilico Tanajura inventou de pegar um desses cofrinhos de plástico que essas financeiras distribuem nas ruas a título de propaganda como chamarisco para angariar clientes novos. Caiu na besteira de levá-lo para casa. Um fiasco. Logo que meteu a cara dentro do apartamento, topou, na sala, com Crístiam, uma das suas filhas. A pequena correu beijar o pai e, ao fazê-lo, descobriu o cofrinho num dos bolsos do paletó.
- É meu, papai, é meu?
- Sim trouxe para você.
- Oba, oba!...
Lembrou, então, da Cristiane, gêmea da Crístiam. Coçou a cabeça. Acabara de criar um problema muito sério. Tentando remediar a situação, saiu correndo atrás da filha, mas a pequena sapeca já havia sumido pela porta da cozinha. Certamente iria levar a novidade para a amiguinha de escola que coincidentemente também era vizinha e morava dois andares acima. Tarde demais. O que estava feito, não tinha como desfazer ou remediar.
Pediu uma cerveja à empregada e enquanto a Lurdinha preparava a bebida, foi ao quarto e se livrou do sapato incômodo e do terno. Odiava sapato social. Terno, então, era a morte. Meteu os pés num chinelo, vestiu uma bermuda meio surrada e pegou uma camiseta na gaveta da cômoda. Retornou à sala. Ligou a televisão. Passeou pelos canais. Nada de bom. Lembrou que comprara um DVD e havia um filme na estante que ainda não assistira. “Vai ser agora”.
Lurdinha chegou com a cerveja e um potinho de porcelana com azeitonas verdes, seu tira-gosto preferido. A serviçal estendeu uma toalhinha e acomodou tudo numa mesinha de centro.
- Mais alguma coisa, doutor?
- Minha mulher ligou?
- Chegará às oito. Hoje é quarta-feira e o senhor sabe, ela tem dentista.
- Cadê minha outra filha? A Crístiam eu sei que está na casa da Samara. E a Cristiane?
- Foi ao shopping com dona Esther, sua sogra.
Bilico apertou o play. Acomodou as costas numas almofadas e botou as pernas para cima. Depois de um longo dia, alguns minutos de relaxamento no conforto aconchegante do velho lar. Sem mulher, sem criança, sem a sogra vigiando cada gesto seu... Que maravilha, ele sozinho, como um rei, só com a empregada a seu serviço. Bastava estalar os dedos e lá vinha a coitada correndo, solícita, atenciosa, um amor de pessoa. O filme começou.
Bilico Tanajura gritou a Lurdinha que lhe renovasse as azeitonas e trouxesse mais uma geladinha.
O filme estava na sua melhor parte. De repente entrou na sala a Crístiam agarrada nos cabelos da Cristiane e a avó na cola, fazendo mais barulho que as duas, na tentativa de acalmar os ânimos entre as briguentas.
- Parem com isso, meninas, parem, pelo amor de Deus.
Crístiam não arredava pé. Continuava mantendo a irmã submissa as suas garras, presa pelos cabelos. Cristiane, sem saída, praticamente sendo arrastada, gritava e chorava desesperadamente. Bilico deu um salto do sofá e olhou feio para as duas.
- Alguém pode me dizer o que é que está acontecendo por aqui?
- Ela pegou meu cofrinho.
- Ele é meu. Eu não peguei.
- Papai trouxe e deu para mim.
- Mentira. Esse aqui é meu. Fui eu quem achou no bolso de papai.
E tome puxada de cabelo pra cá, beliscada pra lá, chutes e tapas.
- Bilico deu um berro.
- Calmaaaaaaaaaaaaaaa!... Querem, por favor, me escutar, as duas?
Ambas se aproximaram. A sogra de Bilico aproveitou o ensejo e veio na onda. Botou o dedo no rosto do genro.
- Você não tinha nada que ter dado essa porcaria a Crístian. Olha só a confusão.
- Dona Esther, por favor, as filhas são minhas.
- Mas eu sou a avó.
- E eu o pai, esqueceu?
- Vá à merda...
- Se a senhora for comigo, cheiraremos juntos!...
A velha partiu para cima do rapaz, mas foi contida pela filha mais a empregada que entravam exatamente na hora que o circo começava a querer pegar fogo.
- Mãe, por favor, Lico, tenha modos. Por que essa confusão toda?
- Por conta de um cofrinho que esse energúmeno trouxe da rua e deu a Crístiam. Esqueceu que tem duas crias. Esse negócio de preferência é um caso sério.
- Não tenho preferência, ô velha jararaca, caninana. Gosto das duas com a mesma intensidade. Vai ver se estou na esquina...
- Me dá um cabresto que se você tiver lá aproveito e trago no laço, para não perder a caminhada.
- Chega. Silêncio, os dois. Mãe, para o quarto.
Dona Esther não se fez de rogada.
- Burra...
- Mãe!...
A velha saiu furiosa, indignada, soltando marimbondos pela boca.
- Você não acha que já está bem grandinho para ficar implicando com minha mãe? Olha a idade dela.
- Querida, foi ela quem começou. Eu estava quieto, no meu canto, tomando minha cerveja, vendo meu filme... Pergunte a Lurdinha.
A esposa de Bilico ia retrucar, mas Crístiam interrompeu a discussão.
- Pai, quem é que vai ficar, afinal, com o cofrinho?
Bilico fez uma cara de ternura e contemplou a jovenzinha que olhava para ele muito séria.
- Você, quem é?
- Sou a Crístian, pai.
- Mentira. Ela é a Crístiam. Você é a Cristiane.
- Não, pai, eu sou a Crístiam, ela é que é a Cristiane.
- Prove.
- Sou eu. Não está vendo?
- Estou vendo duas meninas iguais. Vestidas iguais. Cabelos iguais. Olhos iguais. Quantos anos você tem?
- Cinco.
- E você?
- Cinco.
- Que cor é o seu sapato?
- Preto.
- E o seu?
- Preto.
- Você é a Crístiam. Ela é a Cristiane.
- Não, pai, eu sou a Cristiane. Ela é a Crístiam.
Bilico rodava com as duas em volta de si e começava uma brincadeira que dava gosto de ver. Homem de paciência chegou ali parou.
- Agora quem é você?
- Eu sou a Cristiane. Ela é a Crístiam.
Voltou a se sentar no sofá. Tomou um gole de cerveja e em seguida se voltou para as gatinhas.
- E agora?
- E agora o quê?
- Quem é você?
Risos.
- Eu sou a Crístiam, já falei, pai.
- De novo? E ela?
- A Cristiane, ora.
Mais risos.
- Tive uma idéia: vou dar o cofrinho a quem falar a verdade. Quem é a Cristiane?
- Eu.
- E ela?
- A Crístiam.
As duas irmãs voltaram a trocar puxões de cabelos.
- Mentira, você é a Crístiam, eu sou a Cristiane.
A esposa de Bilico vendo que não tiraria farinha com o marido, nem o deixaria fora do sério, virou as costas, rindo a mais não poder e foi cuidar de preparar o jantar. Lurdinha ainda retornou com mais um punhado de azeitonas e cerveja. A brincadeira entre os três seguia em frente, com a agravante de que cada uma delas queria provar ao pai, quem era realmente quem.
- Eu sou a Crístiam.
- Mentira dela, pai, a Crístiam sou eu. Ela é a Cristiane.
- Cala a boca. Sua boba. Eu sou a Crístiam. Pai, ela é que é...
Bilico brincou tanto com as duas que ambas só pararam com a algazarra na hora em que as panelas fumegantes chegaram e todos se prepararam para a última refeição do dia.
- Pois bem. Como ninguém aqui me provou quem é quem, de verdade, eu confiscarei o cofrinho. A partir de agora ele é meu. Com licença, vou lavar as mãos.
Saiu da sala levando o cofrinho. As mocinhas estavam inconformadas.
- Viu só? Você mentiu para o papai. Eu sou a Crístiam.
- Chata, burra, nojenta. Você é a Cristiane. Eu sou a Crístiam.
A mãe ralhou deixando claro que durante o jantar não queria ouvir nem um pio. As duas mocinhas obedeceram. Todavia, continuaram a trocar farpas com os olhares carregados de insatisfação. Se ódio matasse, certamente morreriam, ambas, em conseqüência dele.


















Heróis da persistência

O
PORTUGUES MANOEL ANTONIO QUER ENTRAR de qualquer jeito para o Guinness. Pretende ficar um mês e quinze dias numa fossa cheia de merda só com a cabeça do lado de fora. Durante esse período sua alimentação será a base de pão misturado à água com açúcar e sal grosso. Na verdade, Manoel quer ultrapassar o recorde de um outro patrício seu, o Antônio Santos, que, aliás, já está com o nome gravado no mais famoso dos livros. O tal lusitano conseguiu ficar parado, feito estátua, exatamente vinte horas, onze minutos e dois décimos de segundos. Quando lhe contaram que havia quebrado o próprio recorde (nenhum outro antes havia tentado tal façanha), Manoel desmaiou nos braços de seu empresário e patrocinador. Foi levado às pressas para o hospital mais próximo da praça onde se exibia para uma multidão de curiosos.
Ultimamente o rapaz de pouco mais de vinte anos anda reclamando com seu médico de fortes dores nas pernas e nos braços.
No entanto, o que mais incomoda, são suas nádegas. Estão muito inchadas e a pobre criatura não está conseguindo sentar com tranqüilidade seu volumoso traseiro nem no colchão de água morna que ganhou de uma empresa que lhe deu mil e oitocentos euros, o equivalente a cinco mil reais para participar da interessante empreitada.
Essa história dos portugueses querer bater recordes gigantescos não é de hoje. Remonta desde os tempos anteriores a Pedro Alvares Cabral, quando este navegador solitário nem pensava em descobrir que além de pau, havia mulheres bonitas e gostosas no Brasil. Recentemente, em Lisboa, ou mais precisamente numa praia de areia fina, em uma vila de pescadores, perto de Sesimbra, aconteceu um certame chamado de o “Torneio das Escadas”. Os participantes tiveram que subir mil degraus em apenas quatro minutos. Só dois chegaram ao topo. Outros cento e cinqüenta desistiram porque descobriram que à medida que subiam, sentiam fortes dores de cabeça e tonturas à altura das axilas.
Mas a história não pára por ai: em Sintra, uma portuguesa, Maria da Lata, em vinte e cinco minutos, montada numa bicicleta, conseguiu atropelar quarenta e oito galinhas. Segundo o jornal Cabo Espichel, dessas quarenta e oito só duas tiveram morte instantânea. Dez passaram a usar muletas e trinta e cinco estão em cadeira de rodas. Em Tejo, um professor de educação física de uma escola da rede pública local e uma balconista de Cascais, ambos com trinta anos, se fizeram passar por médicos por quase uma década. Foram presos recentemente porque conseguiram fugir de um navio, em alto mar, disfarçados de botes-salva-vidas.
Manoel Rodrigues, um outro português nascido e criado perto do Parque Nacional da Arrábida, mas atualmente residindo em Lisboa e trabalhando como faxineiro da Torre de Belém, também deverá colocar seu nome no Guinness. O cidadão em questão tentará dar a volta ao mundo plantando bananeiras e chupando laranja. Já o irmão dele, o Joaquim, que trabalha no Mosteiro dos Jerónimos, como vigia, pretende escrever um romance usando apenas a orelha direita, a despeito da brasileira da cidade de Campos, Ana Cristina de Lima Ferreira que escreveu um livro com a língua. Esse cidadão porá em suas histórias o belíssimo cenário das ruas estreitas de Alfama e do Bairro Alto, onde a trama toda se desenvolverá em dezoito capítulos.







































Olho nu

- E
u me considerava feio, cara, muito feio, até o dia em que -, Mãe Santíssima –, não quero nem lembrar! Chega a me dar arrepios...
- Continue.
- A mulher chegou lá em casa, conversamos uma meia hora na sala, sobre os assuntos mais triviais, tomamos umas cervejas, comemos uns tira-gostos e depois começou a pintar um clima. Fomos para o quarto.
- Então valeu a pena?
- Não tenho nada a reclamar. Correu tudo às mil maravilhas. Porém, na hora em que ela se dirigiu ao banheiro para lavar as partes pudentes e voltou sem roupa, enrolada numa toalha...
- Espere ai. Deixa ver se entendi direito. Vocês transaram vestidos?
- Mais ou menos.
- Como, mais ou menos?
- Na verdade, eu fiquei logo peladão. Estava em meu território e, em nosso território, ou bem ou mal, somos o rei, o manda chuva. Quanto a ela, logo que se deitou a meu lado, toda fogosa e doida para soltar a franga, pedi que arriasse a calcinha...
- Arriasse?
- É. Solicitei gentilmente que só tirasse a calcinha. Que ficasse de saia, blusa e sutiã.
- E ela?
- Achou estranho transar de roupa e tudo só tirando a peça intima.
- Chegaram aos finalmente?
- Sem sombra de dúvidas. Ela, na cama, é divina, maravilhosa. Faz gato e sapato com uma pica ereta e dura. Se não tivesse acontecido comigo, eu mesmo não acreditaria. A poderosa tem o dom e colocar o indivíduo para ir e voltar ao céu, umas trezentas vezes. Confesso que fiquei de quatro, queixo caído.
- Conta a história da calcinha. Estou intrigado com essa parte. Ela tirou e vocês mandaram brasa?
- Sim, nos engalfinhamos até que ela deu uns gritos estridentes.
- Seriam de prazer?
- Acho que sim. Em seguida gemeu, botou as duas mãos na cabeça e quase arrancou os cabelos, sem contar que se mexia mais que cobra em areia quente...
- Como?
- Cobra em areia quente.
- E cobra se meche em areia quente?
- Se meche ou não, meu prezado, não posso lhe assegurar com precisão. Vovô Gob, já falecido -, que Deus o tenha em sua Glória -, dizia que sim e comentava com os amigos dele, quando o assunto girava em torno de mulheres.
- E depois da trepada?
- Como te falei, ela foi tomar banho. Ficou uma hora no chuveiro quente. Pensei na minha conta de luz. Voltou enrolada numa toalha.
- E esfregou de novo o brinquedo na sua cara?
- Pior que isso. Cismou de ficar pelada na minha frente. Não se contentou só de mostrar aquele corpo feio e gordo, mas passou a dançar uma dança esquisita. Você precisava estar lá para presenciar tudo. Parecia uma
avariada maluca.
Risos
- Diante disso você caiu em cima dela de novo?
- Qual o quê! Tive vontade sair em desabalada carreira. A potranca tinha além do corpo feio, umas pernas horríveis, cheias de veias verdes, a bunda horrorosa, descomunal, repleta de estrias, sem falar na pança enorme, derramando banha pura e finalmente o troço... o troço...
- Troço? Que troço?
- O sexo dela. A xoxota no meio das pernas. Meu caro amigo, que desatino!
- O que havia com o sexo dela?
- Parecia um filho de cruz credo desmamado.
- Filho de cruz credo desmamado? Explique.
- Não tenho como. Pretendia até tirar uma segunda, mas ao ver o material ali, às claras, bem diante de meu nariz....
- Caiu matando?
- Ao contrário. Apaguei. Brochei!
- E quanto a ela, em relação a você?
- Adorou, disso eu tenho plena certeza. O tempo todo amou estar por baixo de mim. Suava em bicas. A vagabunda estava no seco, no cio, acho que não via um... acho que não via uma vara há tempos.
- Acabou a festa com você de pau murcho?
- Para mim, sim, para ela, não. Tentou, ao seu modo, uma segunda seção.
-O que foi que ela fez?
- Caiu de boca. Agarrou no ferro pelo talo e mamou como nunca vi mulher nenhuma mamar. Saiu de beiço inchado, os maxilares doendo. E olha que em matéria de mulher não sou nenhum marinheiro de primeira viagem.
- E como ele se comportou?
- Ele quem?
- O seu ... o seu... pinto?
-Me sacaneou. Permaneceu de cabeça baixa o tempo todo: flácido e mole. Acho que nem assoprando decolaria. Não quis nada com o trabalho. Mas a filha da mãe mostrou que tem talento, garra, determinação, força de vontade. Foi em frente. Não desistiu...
- E o que ela fez? Conta, conta, conta de uma vez.
- Me fez um belo de um fio terra.
- Um o quê?
- Fio terra, cara, fio terra.
- E o que é fio terra?
- Não tenho como explicar. Espere um pouco. Se você virar a bunda eu mostro.
- Virar o quê? A Bunda?
- É. A bunda.
- E por que eu faria tal coisa?
- Não quer saber como é o fio terra?
- Querer é claro que eu quero, mas virar o rabo pra você...
- Não somos amigos?
- Claro que sim..
- Então. Arria um pouco a calça, abaixa a cueca que lhe mostro em um minuto.
– Vou trancar a porta. Pode chegar alguém e até explicar o porque de estar de bunda virada para seu lado...
Porta chaveada, o amigo voltou e fez o que o outro pediu.
- Então, como é esse tal de fio terra?
Deu um grito que ecoou por toda a casa. Acabara de levar uma tremenda de uma dedada no olho do cu.



































Lâmpada milagrosa

T
ANGERINO CHUPADO DA SILVA TRABALHAVA NUMA SEÇÃO onde mexia com uma série de arquivos mortos. Por causa deles, passava o dia procurando velhos papeis de pensionistas e aposentados que requeriam benefícios ao INSS. O problema é que muitas dessas criaturas já haviam passado desta para melhor, mas alguém, em nome dos falecidos “defuntos” pretendiam uma revisão disso, ou daquilo, enfim, havia uma máfia lá fora mamando às custas dos “de cujos” e claro, dos parentes que desconhecendo a verdadeira pretensão dos cabeças da gangue, entregavam documentos sem pensar duas vezes nas conseqüências de tal ato.
A função de Tangerino: desarquivar esses processos e encaminhar ao chefe da seção que por sua vez mandava tudo para o pessoal da perícia. Dia desses, num desses arquivos, Tangerino encontrou uma lâmpada tipo a do Aladim. Satisfeito com o achado, pensou num jeito de levar a raridade embora. Talvez a coisa fosse mágica. Como todo ser normal acreditava piamente em sonhos, e por acreditar neles, quem sabe...
Na hora do almoço saiu mais cedo e disse ao encarregado que iria atrás de um par de sapatos novos, tendo em vista que o seus estavam a muito, furados. E realmente isso era verdade. Assim, comprou um modelito vagabundo na primeira loja que avistou. Jogou o velho no lixo e voltou contente para a repartição com a caixa vazia debaixo do braço. Se alguém perguntasse sobre o embrulho diria que ali dentro estava o pisante antigo que levaria de volta para usar nos finais de semana. A idéia: economizar o novo. Continuar surrando o velho. No fundo, a função da caixa era outra: meter dentro dela a lâmpada misteriosa. Assim fez. Orgulhoso da sua vivacidade gabou-se do plano que arquitetara. Ninguém desconfiara de nada e ele saiu da sala, passou pela diretoria, pegou o elevador e para não levantar suspeitas antes de ganhar a rua tomou um cafezinho requentado com o porteiro e fumou um cigarrinho com o vigia.
O trajeto até sua casa demorou uma eternidade enervante. Nunca o trem demorara tanto da estação Luz até Prefeito Saladino onde morava com a mulher, um casal de filhos e uma sogra rabugenta. No aconchego do lar, beijou a esposa na cadeira de rodas e o casal de filhos que brincava com Ritinha, a empregada. Só então se predispôs a esconder o pacote num lugar seguro. Pensou em um que seria inquestionável. Havia entre o guarda-roupas e a parede um vão. Ali Tangerino depositou a caixa. Para despistar curiosos, pegou uma cadeira quebrada e entulhou com umas roupas que estavam sobre a cama. Essa atitude ajudaria a afastar as crianças.
Em seguida tirou os sapatos, a camisa, pegou uma toalha limpa no armário, levou uma bronca da sogra chata que apareceu de repente reclamando das coisas deixadas no meio do caminho, da camisa suada sobre a cama e da toalha limpa que ela havia acabado de tirar do varal para guardar.
- Por que não usa mais uns dias a que está lá no banheiro?
Fazendo ouvidos de mercador Tangerino fingiu não ter escutado uma palavra. Assobiando “Quero que vá tudo para o inferno”, de Roberto Carlos, encostou a porta do banheiro, (nunca trancava a porta, tinha essa mania) ligou o chuveiro e mandou a sogra para a casa do Carvalho. Do Carvalho mesmo, melhor não confundir com aquilo que alguns homens costumam não carregar no meio das pernas.
O Carvalho: sujeito bom, pacato e humilde, da mesma idade da sogra e que vivia paquerando a jararaca. Por azar de Tangerino, a maldita não dava chance para o infeliz leva-la, de vez, para dividir as escovas de dente com ele. O elemento nutria sentimentos nobres com relação a setentona, mas a megera não abria guarda. O fato é que seu Carvalho, duro, - perdão, Tangerino, mole, debaixo do chuveiro, quando via água quente jorrando sobre a cabeça esquecia da vida. Nesse esquecimento levava horas para voltar a si, ao menos para pensar na conta de luz e no rombo que sofreria seu bolso, no final do mês, quando viesse o talão. Nesse interregno a velha resolveu ir ao quarto do genro e preparar uma muda de roupas. Estava quase na hora do banho da filha, que por infelicidade, num desastre de automóvel fraturara as duas pernas e estava toda engessada, sem poder se locomover para as necessidades mais prementes.
La chegando estranhou, de cara, deparar com uma cadeira encostada no canto com algumas das peças de roupas que ela, a pouco, havia passado. Faltava guardar nas gavetas correspondentes. Quem as colocara ali? As crianças, com certeza!
Sem pensar duas vezes, passou a mão na cadeira. Ao passar a mão na cadeira, uma blusa foi ao chão. No que apanha, a velha enxerida avista a caixa de sapatos acondicionada detrás do roupeiro.
- Danadinho. Isso é arte do Marcelinho mais a Francisquinha.
Pegou a caixa de qualquer jeito. A caixa abriu-se, sem querer, e no abrir, caiu no chão à estranha lâmpada fazendo um barulho seco contra o assoalho. Os olhos da velha abriram-se numa cobiça só. Ao ver a jóia, seus pensamentos trouxeram à baila tempos passados.
- Meu Deus parece àquela lâmpada do... como é mesmo o nome do personagem? Ah! Lembrei. Aladim!... Mas espere, pior que é!
Correu à porta, espiou o corredor. A filha, coitada, estava com os olhos pregados na novela. As crianças brincavam.
- Será que se eu fizer alguns pedidos e esfregar, esse treco funciona?
Trancou se por dentro, silenciosamente. Ansiosa, e meia trêmula, não esperou mais. Não custava tentar. Experimentou. Na primeira esfregada, uma grande luz branca começou a surgir do bico da lâmpada enquanto uma imensa forma humana masculina ia se projetando no espaço. Num piscar de olhos pintou na frente dela um gênio com cara de Brad Pitt esbanjando músculos bem trabalhados. Até a voz lembrava o astro, embora a tradução do inglês para o português fosse de péssima qualidade.
- Diga, minha ama e senhora. Estou aqui para lhe servir. Peça e atenderei. Devo informá-la que tem direito a três pedidos.
- Só três?
- Que realizarei imediatamente. Então, madame, o que vai ser?
A velha estava um pouco atordoada e desconcertada com tudo o que estava acontecendo, mas não se fez de rogada. Pensou por um instante e decidiu.
- Quero minha filha fora daquela cadeira de rodas e andando normalmente.
- Seu pedido é uma ordem.
Puf!
No minuto seguinte a sogra de Tangerino Chupado ouviu gritos vindos da sala e fortes batidas na porta. Complemente atordoada, correu abrir. Deparou com a filha andando, Marcelinho, Francisquinha e Ritinha, logo atrás, na maior algazarra.
- Vó, a mãe voltou a andar. Cadê o pai?
Enquanto Francisquinha dava meia volta com Ritinha e ia a busca do pai, para contar-lhe a novidade, a velha passou a mão na filha e no neto e praticamente arrastou os dois para dentro do quarto, voltando a passar a chave na porta.
- Mãe, quem é esse cara e de onde ele saiu? Não me diga que a senhora...
- Calma, filha, não é nada do que está pensando. Deixa que depois explico. Seu gênio vamos em frente: quero ter muito dinheiro para poder viajar e conhecer o mundo com minha filha aqui e meus lindos netos.
E o gênio, solícito.
- Como disse a pouco, madame, seu pedido é uma ordem.
Puf!
Uma avalanche de dinheiro caiu de um buraco que se abriu no teto. Em menos de um minuto metade da peça estava abarrotada de notas de cem.
- Meu Deus, Meu Deus, não acredito. Minha filha estamos ricas.
O gênio interrompeu a velhota e observou.
- Falta o terceiro, minha ama e senhora. Por favor?
A velha parou de rir e ficou séria. A filha abraçou Marcelinho e encarou o gênio. A velha olhou para a filha, depois para Marcelinho e voltou-se para o gênio.
- Chega o ouvido aqui, meu bom amigo. Vou mandar o terceiro pedido.
O encantado, com suas maneiras estudadas e extremamente cortês chegou o ouvido até perto da velha. Realmente um homem bonito, sem falar no porte elegante que lhe emprestava ares de um daqueles antigos reis que viviam em castelos medievais a beira de lagos eternos. Uma pena que vivesse enlampado.
Tradução de enlampado: o mesmo que engarrafado.
- Meu terceiro pedido é o seguinte: quero...
Completou baixinho, sussurrando o restante da frase de maneira que só o encantado a escutasse.
- Perfeitamente, madame. Seu pedido é uma ordem.
Puf!
Vem lá de dentro, correndo, a Francisquinha, com Ritinha a tiracolo segurando com as duas mãos um porquinho todo molhado pingando água pelo chão.
Praticamente esmurram a porta. Quando a mesma é aberta...
- Mãinhê olhe só o que achei no banheiro, debaixo do chuveiro!


















Locutora de terminal

A
MOÇA DO ALTO FALANTE DA ESTAÇÃO RODOVIÁRIA que anunciava as saídas dos ônibus interestaduais e as respectivas plataformas de embarque parece que tinha botado alguma coisa que não gostara, na boca e, por causa disso, dava a impressão de estar engasgada. Célio pensou logo num ovo quente. Depois de alguns segundos concluiu que decididamente o ovo quente estaria fora de cogitação. Quem sabe a beldade estivesse comendo alguma coisa mais leve: um pedaço de pão, uma banana, um sanduíche ou pipoca.
Não que ovo quente fosse pesado, ovo de rodoviária é igual pastel. Neste nunca se acha o queijo e a carne, naquele, não se escuta o cocoricar da galinha.
“... Atenção senhores passageiros com destino a Casa do Chapéu. Horário de 9:30. Por favor dirijam-se...”
Pudesse estar com essa jovem, o Célio a faria engolir o microfone. Junto, o papel que estava lendo, ou melhor, tentando. Pelo que seus ouvidos escutavam a desgranhenta nem ler direito sabia. Soletrar, nessas alturas, já estaria de bom tamanho. Ao menos se decorasse a porcaria do texto ou procurasse pronunciar as palavras com mais precisão, com certa flexibilidade, sem atropelar as vírgulas e deixar para trás os pontos finais.
“... O terminal rodoviário informa para dores gripes e resfriados procure a Farmácia do Chicão ao lado da Viação Sebo nas Canelas boxe 34...”
Pensou com seus botões que essas criaturas deveriam ter um curso de como tratar com um texto corretamente, dando-lhe a devida atenção e respeito, seguido, claro, da prática do exercício da pronúncia certa e com desenvoltura.
Falar sem cantar, procurar ler como se estivesse conversando normalmente. Nada de boa viágeeeeeeeeem (esse viá sem a conotação da Kely Key, tão em moda). Ridículo o “... apresentem-se para embarque na plantaforma...”
Parece que uma abelha havia entrado em seus tímpanos e lascado uma tremenda de uma ferroada. Não é plantaforma que se diz, mas PLATAFORMA. Meu Deus durma-se com um barulho desses, ou melhor, viaje-se com um barulho desses, ou, pior ainda, espere-se pelo horário da passagem com uma incisão dessas na pele sedutora da língua portuguesa.
“... Senhores passageiro a Informe Bem deseja-lhe boa viagem...”
Cadê o “os” de passageiros e o “lhes” de deseja-lhes? O gato comeu!
Com certeza a infeliz não tinha nada na boca. Célio pensou, a princípio, tratar-se de um ovo, um ovo quente. Logo depois achou que fosse um pau, uma lasca de madeira atravessada, uma espinha de peixe. Essas coisas também atrapalham. Contudo, o melhor que tinha a fazer seria colocar nos ouvidos os fones ligar seu pequeno aparelho de CD e ouvir a Egüinha Pocotó. Todavia, Célio não se conformava. Professor de português graduado em letras, mestre em lingüística pela universidade de Campinas não descia garganta abaixo essas baixarias da língua. Uma palavra dita de forma errada fazia com que perdesse o sono. Uma frase mal construída espantava a tesão. Com um verbo colocado erroneamente chorava, enjoava, magoava, enfim, ficava estressado. Se tivesse um tantinho assim de chance, ia lá na cabina onde a garota da rodoviária estava sentada e lhe enfiava, incontinente, o CD que ganhara da namorada, enfiava sem dó nem piedade goela adentro. Tinha importância não: era um CD pirata do Lacraia! Desses que vem com tapa olho na tampa.
































Meu bem, não é nada disso que você está pensando!...

O
REPORTER PEGOU TONINHO BAIACU NESTE INÍCIO DE SEMANA, bem no meio da praça, de surpresa, meio de supetão. Atrás do repórter, um cara com uma câmara ligada gravava cada palavra que saia de sua boca, enquanto um outro, com uma luz forte, acesa acima da cabeça, suspensa por uma espécie de mastro, tentava jogar o foco diretamente na direção do seu rosto. Em redor dos quatro, uma pequena multidão de pessoas começou a formar uma rodinha, até que o cordão humano se tornou coeso e atento, não só as perguntas que eram formuladas, como também às respostas do entrevistado. Não se ouvia a respiração de ninguém. Na verdade, todos estavam ávidos para saber o que o jornalista queria com aquela entrevista e como o Toninho Baiacu (até aquele momento um ilustre desconhecido, para todos, na praça) se sairia da empreitada.
- Você me disse que se chama Antônio, ou melhor, Toninho. E me disse também que tem um apelido engraçado. Poderia dizer qual é esse apelido?
- Pois não: Toninho Baiacu.
- E por que Toninho Baiacu?
- Porque desde pequeno, aprecio esse tipo de peixe. Baiacu é um peixe. Não como outro, por melhor que seja. Daí o pessoal lá de casa, meu pai, meus irmãos, minhas irmãs, resolveram me chamar de Baiacu. E pegou...
- Toninho, vou lhe fazer algumas perguntinhas, você vai participar, ao vivo, do programa do Fernandinho Cuca Fresca, da Rede Vem que é Mole. Pode ser?
- Claro.
- Olhando para esta câmara, quando eu falar três. Podemos começar? Um, dois, três. Fernandinho estou aqui com o nosso amigo Toninho, conhecido, na intimidade dos amigos, como Toninho Baiacu. Por favor, diga um olá para o Fernandinho.
- Olá, Fernandinho, tudo bem? É um prazer muito grande participar do seu programa.
- Toninho, vou lhe fazer algumas perguntas. Aliás, as mesmas que já fiz anteriormente para dois caras da pesada que estão concorrendo com você. O Marcos e o Cláudio. Preste atenção. Não pode pensar muito, tem de falar o que vier na cabeça, certo? O menor tempo ganha um final de semana, com tudo pago, para curtir, com a namorada, amiga, ou quem você quiser levar como acompanhante para a suíte presidencial do Motel Fome dos Prazeres, do nosso amigo Léo, para quem eu mando um abraço. Preparado?
- Positivo.
- Você é casado?
- Não, sou solteiro.
- Bem, sendo solteiro, fica um pouco complicado. Mas tudo bem vamos lá: saberia dizer para o público aqui presente e para todos os demais telespectadores qual é o maior e o melhor truque feminino?
- Bem, embora seja solteiro, como já lhe falei, tenho, graças a Deus, um punhado de mulheres aos meus pés. Você me perguntou qual é o maior e o melhor truque feminino. Pois bem: o maior é quando a mulher, na cama, nos leva ao delírio, ou a loucura. O melhor é quando alcançamos, juntos, os finalmente e gritamos: Mengo, Mengo...
- Vejo que o amigo é um flamenguista doente.
- Eu? Com certeza.
- Pois muito bem: quem você levaria para uma ilha deserta?
- Eu? Deixa ver: a Karina Bacchi? Não, muito nova! A Xuxa? Acho que a Xuxa não faz o meu tipo. Já sei: a Juliana Ferraz, apresentadora do SPORTV.
- Sentiu o lance aí, ô Fernandinho? Nosso amigo aqui tem bom gosto. Mandou bem.
- E por que a Juliana?
- Ela é gostosa demais. Tem um traseiro...
- Três coisas que você pediria, caso ela chegasse aqui, agora.
- Eu? Três coisas? A quem, a Juliana?
- Claro.
- Me leva ao céu, beleza. Joga minha cara na parede e depois me pisa com toda força. Espezinha meu pescoço até sangrar.
- Casamento?
- Eu? Tô fora.
- Companheira ideal.
- Prá mim? Bem, eu... a Monique. Isso mesmo, Monique, uma vizinha do arco da velha que mora de frente para minha casa. Ai! Me arrepio todo, só de pensar nela...
- Toninho, como você se define?
- Eu? Bem: gostoso, machudo, bom de cama...
- Consegue marcar quantos gols numa só noite?
- Eu? Bem. Tenho que responder a isso?
- Claro, você está ao vivo, para todo o Brasil.
- Bem duas, três, sei lá. Depende do pedaço de mau caminho que estiver comigo. Se for a Carolina Magalhães, por exemplo, acredito que consiga alcançar o clímax umas quatro ou cinco vezes.
- Garoto esperto, Fernandinho. Esse aqui bota nós dois no bolso. Só gosta do que é bom. Agora, a última, concorrendo com o melhor tempo. Se for você, e vou torcer para que seja, um final de semana com tudo pago na suíte presidencial do Motel Fome dos Prazeres, do nosso grande amigo Léo. Boa sorte. Toninho, se você chegasse em sua casa agora, e recebesse o recado de que sua vizinha, como é mesmo o nome dela?
- Monique...
- Isso mesmo, se você chegasse em sua casa agora e recebesse a notícia de que a Monique pediu para que você fosse até a casa dela trocar uma lâmpada e, quando você chegasse lá, ela viesse abrir a porta só de calcinha e sutiã, e tivesse segurando, nas mãos, uma lâmpada, e na outra uma escada, para você subir e trocar a lâmpada, claro, o que é que você faria? Dois segundos. Tempo.
- Engolia a lâmpada e me acendia, depois, todinho, dentro dela, como um curto circuito subindo ligeiro, pela escada.
- Muito bem: resposta inteligente e criativa. Vamos a mais um candidato. Temos o Marcos, o Cláudio, e o Toninho. Vamos lá, deixa eu ver, quem vai ser, okei, você aí, atrás da moça de amarelo, o cara de blusa azul. É, você, mesmo. Vem prá cá, correndo. Fernandinho diretamente dos nossos estúdios, a produção com o cronômetro nas mãos, marcando o melhor tempo: quem será o vencedor? Toninho Baiacu, Marcos, Cláudio ou... muito boa tarde, como é o seu nome?
O Domingo, finalmente, chegou. Nesse dia, acontecia o aniversário da sogra de Toninho. Estava, pois, por conta desse evento, reunida, a família, em peso, bem como parentes e amigos em torno da mesa farta e das bebidas, e a aniversariante. No quintal imenso rolava um churrasco no capricho, refrigerante para a garotada a dar com o pau e para os marmanjos muita cerveja gelada. Por volta de oito da noite, todos resolveram sentar na sala defronte a piscina e ficar de olho na televisão. Ou melhor, para assistir ao Programa do Fernandinho Cuca Fresca. No transcorrer da semana, a emissora vinha anunciado, durante a programação, nas chamadas do Programa, que o sujeito que ganhara o prêmio residia no bairro de Santo Antão, exatamente onde o Toninho morava. Para aumentar o impasse e criar expectativa em torno da audiência, o canal de TV não revelava o nome do vencedor, e só mandava para o ar o nome do bairro que tinha sido contemplado. Praticamente quando a comunidade de Santo Antão ficou sabendo, a galera, em peso, abriu a caixa da curiosidade: todos, sem exceção, queriam saber quem era o felizardo, para evidentemente cumprimentar o sortudo e dar-lhe os parabéns.
De repente, eis quem toma conta da telinha. Isso mesmo. Toninho Baiacu, em carne e osso. Os filhos, quando viram o pai, promoveram uma algazarra sem tamanho. Um dos garotos grudou no seu pescoço, o outro pulou em seu colo enquanto o menorzinho saiu em disparada chamando pela empregada da casa, que conversava nada mais, nada menos com a Monique, a vizinha da frente.
- Tia Monique, tia Monique, papai está aparecendo na televisão...
Vieram as duas, correndo e tomaram acento no meio da sala. A esposa, eufórica, danou a gritar:
- Fiquem quietos, todos. Vamos escutar o pai de vocês.
A velha sogra levantou-se e como era meia surda foi ficar mais perto do aparelho.
- Meu genro, você daria para ser artista. Fica bem, diante de uma câmara e um microfone.
O sogro não se fez de rogado.
- Lembra um pouco meus tempos de rapaz, esse danado.
Toninho levantou-se de, num salto e correu para a televisão.
- Meu velho sogro tem um jogaço, na Band...
A esposa deu um chega para lá, a cunhada achou ruim, o sogro, idem e a dona Gertrudes, a sogra que aniversariava, estava mais atenta e ligada que cheirador de cola, depois de ter lambuzado o nariz pela trigésima vez. Toninho Baiacu entrou em pânico. Justo nesse dia o desgraçado do programa do Fernandinho estava indo ao ar, e pior, tudo indicava ser ele o felizardo. Pulou daqui e dali, tentando despistar os presentes. Vamos ver outra coisa: essa porcaria do Fernandinho só bota no ar coisas sem sentido. Vamos para o SBT...
Toninho quase apanhou. A galera, em peso, queria assistir na íntegra, a entrevista dele, na praça e saber das respostas que havia dado às perguntas do repórter. A esposa, nem cabia em si de contentamento, naturalmente levada pela euforia de estar vendo o marido, pela primeira vez numa tela de televisão. O infeliz olhou para a sogra, para o sogro, para aos filhos, para a cunhada, para aos amigos, e seus olhos fixaram-se depois, em Monique. Com certeza, naquela noite iria tudo por água abaixo: sua vida, seu lar, seus filhos, a amizade dos amigos. Era o fim. Era o fim, sem sombra de dúvidas.
Minutos depois quando a entrevista acabou, e o repórter, finalmente, revelou o nome do vencedor, as coisas de Toninho Baiacu já estavam todas no meio da rua, jogadas não só pela esposa, como pela sogra e pela cunhada.
Foi chegando gente, foi chegando vizinho, amontoando caras e rostos nos muros em derredor, juntando a turma do bar e também alguns conhecidos do Toninho que vieram dar os parabéns e apertar sua mão.
Tarde demais. Toninho mal teve tempo de pegar os documentos e botar uns trocadinhos no bolso, para pagar a passagem do ônibus.

















Iniciação
“Ah! Essas mulheres, sempre tive uma, amando quatro de cada vez...”
(Fernandinho Saraiva).

A
PRIMEIRA, DE UMA SÉRIE DE MUITAS, QUE TIVE O PRAZER DE colecionar, ao longo da vida, foi uma empregadinha doméstica que veio trabalhar em casa, logo que mudamos para o apartamento novo. Elizabete. Loirinha, de olhos verdes, dezenove anos. Uma gracinha de menina, um amor de pessoa. Personalidade acima de qualquer suspeita. Monumental. Quando a vi, pela primeira vez, meus olhos se encheram de minúsculos coraçõeszinhos apaixonados. O tal cupido que o Lilico, meu irmão de vinte e sete vivia falando toda hora, finalmente havia atirado seu dardo envenenado e acertado em cheio o meu coração de garoto que começava a descobrir as coisas boas do mundo. Logo que veio morar com a gente, Elizabete não trouxe muitas coisas. Sua bagagem, se bem recordo, não passava de uma bolsa de naylon, bastante surrada, de um verde desbotado, meia dúzia de sacolas de supermercados com sapatos, discos e uma outra, com uma caixa cheia de produtos de beleza.
Mamãe a ajudou a se instalar. Deu-lhe um cobertor, lençóis, fronhas, uma colcha e um travesseiro. Não havia cama. Nos primeiros dias Elizabete dormiu no chão, de frente para a porta, numa espécie de estrado improvisado por papai. Os meses foram passando...
Durante o dia Elizabete cuidava de todos os afazeres domésticos oriundos de uma casa de família: lavava, passava, vigiava um irmão recém-nascido, (raspa de tacho, como apregoava meu velho), fazia feira aos domingos e, ainda, ajudava mamãe a servir o café, o almoço, o lanche da tarde e, a noite, o jantar. Depois de cumpridas todas essas tarefas, ela se retirava para seu quarto e ficava por horas a fio ouvindo discos numa velha radiovitrola.
Com o passar dos dais, as coisas para ela melhoraram consideravelmente. Havia, agora, num canto, uma penteadeira, com um espelho oval, um banquinho e uma cômoda, onde colocava, bem arrumadinho, um monte de lps de Roberto Carlos, Jerri Adriane, Wanderlei Cardoso, Gilliard, Odair José, Diana, Jessé, Cely Campello, Guilherme Arantes, Adilson Ramos, Carlos Alberto e tantos mais. Naquele tempo, não existiam os CDs, os bolachões, ou discos de vinil, com capa plástica e tudo mais faziam a festa e invadiam as lojas de discos. Elizabete seguia uma espécie de ritual: entrava no quarto, encostava a porta, não passava a chave, apagava a luz e acendia um pequeno abajur em forma de elefante. Despia-se, esparramando as roupas a caminho do banheiro. Tomava uma ducha longa e demorada, de meia hora, talvez um pouco mais. Vinha, então, a melhor parte. Saia do chuveiro, só de calcinha e estirava o corpo na cama de solteiro que meu irmão doara para ela, logo depois do seu casamento com a Liliane.
Meu posto de observação ficava num lugar bastante engraçado. Para as sessões de espionagem, lembro que precisava trepar numa espécie de baú repleto de livros e cadernos atirados às traças. Essa peça jazia, jogada as traças, perto da máquina de lavar roupas e do tanque, na varandinha, ao lado da porta da cozinha. Era dali que espreitava, às escondidas, a Elizabete, depois do seu retiro para a intimidade. Havia uma báscula que nunca fechava, servia mais como passagem de ar para resfriar o ambiente. Uma espécie de cortina caia por sobre os vidros lisos e devido a isso, se tornava difícil ou quase impossível alguém, do outro lado dar comigo espionando. Ademais, tomava um cuidado medonho para que ninguém pegasse no flagra, principalmente o Nelsinho, outro irmão, ainda solteiro, que costumava trazer a namorada para dar “uns amasso” numa espécie de dispensa, onde guardavam, além das ferramentas de papai, mantimentos em estoque, latas de óleo, garrafas de cerveja, produtos de limpeza, botijões de gás e outras quinquilharias.
O fato e que a cada nova manhã Elizabete ficava mais radiante. Simplesmente abafava. O salário que ganhava, aplicava em coisas de uso pessoal. Tinha um excelente bom gosto, a danada. Gostava de usar roupas curtas e justinhas à pele, (estava em moda a mini-saia) e geralmente as garotas imitavam a cantora Wanderléia. Por assim, quando colocava um daqueles minúsculos chortinhos realçando o bumbum, ou uma saia deixando à mostra a calcinha, eu viajava na maionese. Pirava na batatinha. À noite, os ares ficavam mais densos. Elizabete saia do banho, se enfiada numa camisola branca, muito curta e transparente, que mostrava, em todo o esplendor, seu corpo de mulher, as formas perfeitas, a barriguinha, o umbiguinho, com destaque para o biquíni minúsculo com enfeites de gatinhos cobrindo carinhosamente o triângulo do amor. Para mim, tudo aquilo dava a impressão de estar espremidinho, pedindo socorro. Nessas horas, voava em pensamentos distantes, ao tempo que roia desesperadamente as unhas. Um dia Elizabete pulou fora do banho, sem nada cobrindo a nudez, sem a calcinha, sem a toalha, sem qualquer recato ao pudor, a água quente escorrendo, macia por sobre seus cabelos formando uma poça nos azulejos brancos do chão. Caminhou até o aparelho de som e colocou cuidadosamente um disco no prato. Ajustou o volume de maneira que somente seus ouvidos pudessem curtir a melodia: era o Odair José e as musicas desse artista faziam um sucesso danado, na época e ela, fã de carteirinha, sempre que podia, botava alguma coisa dele para rodar. Tinha, inclusive, um pôster tamanho gigante, pregado na parede, ao lado da janela, que dava vista para o prédio contíguo:
“... As minhas coisas”.
de repente estão tristes
compreenderam que não existe
nada mais entre nós
Meu violão
caiu de cima do armário
suas cordas rebentaram
dando adeus a minha voz”...
A graciosa parecia absorta. Sem ao menos se enxugar ou se cobrir com a toalha, deitou de barriga para baixo, deixando à mostra, para meu deslumbramento, um senhor par de pernas bem torneadas, que terminavam numa montanha de ancas bem proporcionadas, dessas de deixar qualquer homem maluco com visões sinistras do paraíso. Vendo aquilo, o instinto falava alto. Aliás, isso sempre acontecia. Bastava fixar os olhos em Elizabete, algo anormal como um fogo interior transformava meu ser. Cuidadoso, olhava para a porta da cozinha. Ninguém por ali. Corria os olhos para o lado da dispensa. Nada, também. Então, relaxava, dava asas à imaginação. Abaixava o calção até a altura dos joelhos e colocava para fora, o membro enrijecido pelo tesão que sentia por aquela deusa maravilhosa que me deixava completamente louco e fora de qualquer controle. Do meu posto, acomodado na ponta dos pés e por sobre o baú de livros, chegava até mim uma visão privilegiada da cama e, em cima dela, o pecado em todas as suas formas, exposto sobre o lençol de algodão e, ao fundo, parte da entrada do banheiro onde ela refrescava o cansaço estafante do dia-a-dia. Enlouquecido, sonhava acordado. Imaginava mil coisas como por exemplo estar deitado ao lado dela, entrelaçado em seus braços, o sangue fervendo nas veias, o suor escorrendo, os sentidos todos em alerta. O meu deslumbramento, entretanto, não ia além de um momento de pura felicidade, um momento fugaz, muito rápido. Elizabete desconhecia os meus anseios secretos e tampouco imaginava que a comia, que a devorava, literalmente, da cabeça aos pés, centímetro por centímetro, sorrateiro, como um bicho acuado, enquanto ela, na tranqüilidade de seu retiro pessoal, sabe-se lá, pensava em algum namoradinho distante. Nesse chove não molha, enquanto descontraída, ela cuidava de si, ora pintando as unhas ora escovando os cabelos, que caiam até a cintura. A musica rolava. Eu, de cima do baú, só me restava a satisfação de me contentar com um querer enorme, mas frustrado.
Nervoso, com os neurônios em alerta geral, agarrava o nervo duro e irrequieto no meio das pernas. Chegava à exaustão, devido a cadência empregada com as mãos, para atingir o clímax, chacoalhando, sem parar o órgão genital. Essa brincadeira de mau gosto, (de mau gosto porque somente eu participava), perdurou por muitos e muitos meses, até que numa noite, também já prestes a gozar, eis que de repente, o Nelsinho, como surgido dos quintos do inferno assomou no umbral da porta da dispensa, com a droga da namorada a tiracolo. Os dois me pegaram de calças arriadas, na hora agá, no instante derradeiro, justamente quando meu corpo, voltado para os prazeres da carne, uma vez mais, liberava uma porrada de espermatozóides em homenagem àquela deusa encantada, que recostada sobre a cama e ao som do Odair José, seguia indiferente aos meus problemas de menino adolescente batendo às portas dos dezesseis.
- Bonito, seu moço. Descascando banana em plena oito horas da noite! E ainda por cima importunando a Bete. Deixa o pai saber disso.
Não contente, completou a frase:
- Mãe, ô mãe, venha até aqui na cozinha ver um negócio...
Exatamente o que temia acabou acontecendo. Deu uma encrenca dos diabos. Para mim, evidentemente. Mamãe acorreu, com uma vizinha de apartamento, chata, que não saia lá de casa, o senho franzido, os olhos dilacerados pela fúria. Enquanto meu irmão me puxava o braço, aos beliscões, me arrancando, em contrapartida, pelado, de cima do baú, em vão tentava esconder o pinto da namorada dele, como da mamãe e da vizinha. Aliás, essa maldita destrambelhada, me olhava como se estivesse encarando um maníaco. O engraçado, o cômico, no meio desse povo todo que apareceu, uma vergonha infinita veio vindo lá do fundo e queimou, por inteiro, meu rosto pálido. Se fosse a Elizabete, com certeza, o vexame não atingiria graus tão altos.
Em meio à confusão que tomou forma, Elizabete saltou da cama, acendeu a luz, desligou o som e meteu o bedelho. Pegou-me num beco sem saída, numa situação caótica que não desejaria ao pior inimigo. Levei, na frente de todos, uns belos tabefes no meio das ventas. Quando papai chegou à cinta comeu firme no lombo. Apanhei feito cachorro magro e sem dono. Depois desse mico, optei por ficar de molho, quase um mês, confinado dentro do quarto, com vergonha de aparecer para Elizabete, embora soubesse, de antemão, que a namorada de meu irmão Nelsinho, havia contado a ela, com riquezas de detalhes o incidente, desde o instante em que me pegaram com as mãos na massa. Pronto, estava na boca de todos o meu segredo, desvendado, exposto, com direito até a apelido: “tarado da bunda branca”. Em parte, a alcunha ajudou muito. De tanto falarem do meu traseiro branco, Elizabete, por fim, aquiesceu. Veio chegando, aos poucos, de mansinho, devagar. Parecia não ter pressa. Trazia o café, o almoço, o lanche, conversava muito sobre tudo, sentava a meu lado para ver televisão...
Rolou o clima num final de semana. Ninguém em casa. Do seu jeito, como só ela sabia. Aconteceu. Perdi a virgindade e, junto, os medos bobos que povoavam minha adolescência. Passei a conhecer, a partir de então, um mundo diferente e, dentro dele, um sonho obscuro, onde um universo imensurável se abriu. Elizabete me fez ver o outro lado da moeda, ou seja, o reverso da clausura na qual vivia enfurnado. Conheci mais, senti o prazer, conheci o amor, a felicidade se fez plena, e a alegria de viver que todos buscam veio ao meu encontro, como um sol gostoso batendo no rosto. Elizabete ficou com a gente por quase oito anos. Nesse tempo, me ensinou tudo o que hoje sei, tudo o que um homem deve saber para fazer uma mulher se sentir plenamente realizada. Nosso caso de amor, que deu até aborto, infelizmente terminou no dia em que completei a maioridade. Vinte e um anos. Meu Deus, estraguei tudo! Ela me pegou, na cama de casal dos meus pais, com a filha de uma moradora nova, que se mudara recentemente, para um apartamento, porta com porta, no andar em que morávamos.

















Para bom entendedor, uma cerveja basta.
(para meu amigo SIVUCA, im memorian)

O
NTEM FOI UM DIA MISERAVELMENTE MASSADOR. Chato pra cachorro. Pra cachorro não, particularmente pra mim. Se nós, ou melhor, se eu tivesse o dom de adivinhar ou prever os acontecimentos futuros, como a espertalhona da Mãe Diná, certamente não teria saído de casa. Verdadeiro desastre. Logo ao por a cara para fora do apartamento, tropecei nas escadas do prédio. Quase quebro o pé.
Até a parada, para tomar a lotação, uma chuva intermitente me deu um banho daqueles de gelar até os cabelos da alma. Não sei se alma tem cabelo, mas vá lá, isso é de somenos importância. Geralmente ensopo os ossos nos dias de aguaceiro. Não uso guarda-chuvas, aliás, nunca uso guarda-chuvas. Tenho verdadeira ojeriza a esse tipo de objeto, ainda mais porque ando com a cabeça nas nuvens e acabo esquecendo a porcaria em qualquer lugar.
No ônibus, acomodei o traseiro ao lado de uma mulher gordona, parecia mais com um piano de cauda desafinado, de segunda mão, recém saído de um antiquário. A dona ocupava o assento da janela e boa parte do meu, aliás, mais o meu que o espaço a ela reservado. Tive que viajar até o ponto onde pretendia descer, espremido feito uma sardinha raquítica dentro de uma latinha hermeticamente fechada. Que droga! Nessas horas é que a gente aprende e tem consciência de como se sente uma miserável sardinha numa latinha hermeticamente fechada. E a bendita senhora me olhava de soslaio, como se me recriminasse por estar prostado exatamente naquela cadeira.
Ao deixar o coletivo, ainda embaixo de fortes pancadas de São Pedro, tomei outra ducha ao atravessar a rua para galgar a calçada que dava até os escritórios da firma onde trabalho. Um automóvel, vindo não se sabe de onde, passou feito um furacão. Deu aquela espirradela de água suja de lama ao bater os pneus num buraco. Desta vez tive sorte.
Outros também foram atingidos. Só ouvi gente xingando a mãe do infeliz. Não sei porque, as pessoas pensam distribuir impropérios afrontosos, direcionados principalmente às mães. Existem umas figuras, de línguas afiadas, que nessas horas perdem a linha, a estribeira, o bom senso. Mandam o motorista deseducado e barbeiro enfiar o carro naquele lugar, como se naquele lugar coubesse um carro, com motor e todos os acessórios que o acompanham. Segui meu caminho. Parei na banca de revistas do Epitáfio, para correr os olhos nos jornais pendurados.
“Cachorro faz mal à moça” – estampava um, em letras garrafais – enquanto outro proclamava o novo salário mínimo.
Uma vergonha, esse negócio de salário mínimo. Por mais que o povo brigue por um regime de rendimentos melhores ou condições igualitárias justas – e não consegue, ou melhor, nunca consegue, o governo ganha os tubos e põe a culpa na Previdência. Não sei porque, a Nação não explode, de uma vez, com a Previdência. Chama minha atenção um jornaleco sensacionalista. A manchete com letras destacadas anuncia: “marido mata esposa com bife que lhe foi fritado”.
O dono da banca pergunta se vou levar alguma publicação, sabendo, de antemão, que jamais gasto dinheiro com besteiras. Sigo adiante.
O próximo alvo é a casa de discos do André da “Muleta”. Colocaram esse apelido nele, porque perdeu uma perna num acidente de motocicleta. Nunca o cara chegou a montar em uma, porém, um desgraçado, pilotando embriagado, passou por cima dele. Antes de cumprimentar o mancebo - palavra esquisita, essa - poderia ser substituída por moço, rapaz ou jovem. Um amigo meu, o Canterbury, me chamou a atenção dizendo que é feio colocar apelido em alguém. Segundo ele, mancebo é um cabide para pendurar roupas, formado por uma haste nos braços. A bem da verdade, não estou interessado no verdadeiro significado dessa droga de palavra. O Canterbury que vá, portanto, chupar prego ate desenferrujar a cabeça.
Nesse momento, o André botou um CD para rodar. Adorei o balanço da música. Lembrava Mestre Sivuca, aquele do acordeom. Perguntei de quem era o disco e o André, brincalhão, gritou: é do Severino Dias.
- E quem é Severino Dias?
- Você não conhece Severino Dias?
- Nunca ouvi falar.
- Pois saiba que esse cidadão é reconhecido no mundo inteiro. Brasileiro natural de Itabaiana, na Paraíba. Nasceu em 26 de maio, de 1930. Esteve exilado no exterior, convencido da marginalização da música instrumental e do solista popular brasileiro.
- Estou pasmo!
- Quer saber mais? O poderoso aí tem um currículo de fazer inveja. Trabalhou com Mirian Makeba, Harry Belafonte, Oscar Brown Júnior e fez varias turnês. Tem três CDs individuais nos Estados Unidos e dois na Europa.
- Tudo bem. Apesar desses esclarecimentos interessantes, seu Severino Dias continua sendo para mim como um bife bem gostoso, mas mal passado.
Um cliente que comprava, até aquele momento calado, observando o desenrolar do papo, pediu um aparte e entrou na conversa:
- Severino Dias você sabe muito bem de quem se trata, meu amigo. Aposta uma cerveja?
- Não recordo! Severino, Severino, Severino?
- Vale uma cerveja?
- Positivo. Se faz tanta questão...
- Severino Dias é o Mestre Sivuca, aquele do acordeom!....



















































Parece até pegadinha

O
APARTAMENTO DEFRONTE AO QUE BISONHO mora, possui duas campainhas distintas. Uma delas tem uma tampinha cinza e o buraco redondo com duas pernas de fios soltas. Quando chega alguém querendo falar com o morador, que, diga-se de passagem, nunca ninguém viu nem mais gordo nem mais magro, existe abaixo do olho mágico da porta do sujeito uma caixinha dessas modernas, ou melhor, a campainha de verdade, para que seja comprimida e, uma vez acionada, alerte o residente de que há gente do lado de fora. Sempre que pinta uma viva alma no pedaço, Bisonho fica sabendo, não porque bisbilhote o tempo todo, simplesmente o alarme sonoro do subir e descer do elevador disparava um “plim” igual o da Globo e, corroborando a atitude desse mecanismo, as dobradiças enferrujadas da velha engenhoca rangem desesperadamente.
Nessas ocasiões, o rapaz aproveita para espiar, claro, pelo olho mágico e ver quem é a visita que anda a cata do vizinho misterioso. Curiosidade de quem não tem o que fazer. Contudo, um bom exercício para passar o tempo. Bisonho se deparava, nessas ocasiões, com as situações mais engraçadas e inusitadas possíveis. Outro dia uma moça loira, procurava pelo botãozinho da campainha. Ela não viu, diante de si, a caixinha, abaixo do olho mágico e por essa razão começou a futucar, na esperança de enfiar um dos dedos no buraco da tampinha cinza e juntar os fios. Os dedos não ajudaram em nada. Talvez fossem os anéis que atrapalhassem. Quem sabe a cor dos cabelos. Em seguida ela introduziu o polegar e o indicador com o objetivo de a qualquer custo fazer funcionar a geringonça. Puro fiasco. Saiu furiosa, cuspindo marimbondos.
Não foi diferente com um cidadão baixinho, de chapéu na cabeça e uma bolsa dessas 007. O infeliz chegou ao cúmulo de a certa altura das frustradas tentativas, meter a cara no olho mágico com a finalidade de ver se enxergava alguma coisa dentro do apartamento. Também teve problemas com os fios. Pelo visto, e pelo ar desagradável que fechou em seu rosto, deve ter tomado um tremendo de um choque. Desistiu, pois, da empreitada. Resmungando, deu meia volta e desapareceu.
Bisonho chegou à conclusão de que as pessoas, de um modo geral, são levadas e expostas ao ridículo por pura comodidade. Ninguém pára por alguns instantes com a intenção de analisar o que está posto e visível diante dos olhos. E pensar numa solução simples que dê algum resultado prático. Às vezes, um problema insignificante, de solução clara, está logo ali, atropelando, mas a pressa, o e nervosismo juntos, de mãos dadas com a velha burrice botam tudo a perder.
O incrível e cômico na história: quem quer que chegue logo se vê as voltas com os fios da campainha. Talvez, no fundo, seja essa a verdadeira intenção do dono do apartamento. Dar choque nos chatos que não desistem de vir até sua residência perturbar o sossego. Ele deve rir muito e se divertir um bocado. De qualquer forma, esse vizinho de Bizonho não quer, decididamente, ser incomodado por ninguém. Por que, então, fornece o endereço correto de onde mora? Desse o de uma tia, ou o de um amigo, e preservasse a sua privacidade com unhas e dentes, não com fios desencapados.
Mas os trocinhos da campainha soltos, de certa forma instigam a atenção dos que acampam, de repente, diante da entrada do elemento, seja com pressa, suando em bicas, ou porque tenham outros afazeres a serem cumpridos, além daquele de estar ali. Pelo sim, pelo não, todos os que estiveram no corredor esqueceram de atentar para os mínimos detalhes e de apertar o botãozinho correto, à vista de um cego, logo abaixo do olho mágico.
Bizonho percebeu, nessas suas olhadelas clandestinas, que cada ser humano reage de uma maneira diferente. Uns xingam, outros fazem caretas, olham para os lados, desconfiados, inclusive, teve um visitante, que se deu ao trabalho de encarar o olho mágico da sua porta. Não se sabe com qual finalidade. Deve ter levado um puta susto, pois ficou evidente que estava sendo filmado. As mulheres, em meio a essa confusão, são as mais interessantes de ser reparada: elas se ajeitam, penteiam os cabelos, retocam a maquiagem, renovam o batom dos lábios. Os homens são menos exigentes com a aparência. Só corrigem o nó da gravata, os óculos, ou dão uma batida discreta, com uma das mãos, no paletó, para afastar algum posinho ou cisco, que por ventura tenha ficado grudado. Pensam em tudo, esses ilustres visitantes, mas esquecem do mais simples: apertar o botãozinho da segunda campainha, logo abaixo do olho mágico ou, por outra, de bater suavemente, com os nós dos dedos, produzindo um leve toc, toc, toc, na porta sisuda e silenciosa, parada, estática, bem diante de seus focinhos.


















Mico

A
MERCEDES PRETA, COM OS VIDROS FUMÊ, encostou silenciosamente na única bomba que se encontrava vazia para abastecimento. Cristiane, uma das moças veio, solícita, atender. O motorista, um sujeito magro, abriu meio vidro, o bastante para passar a chave:
- Completa o tanque, por favor.
Cristiane, mais que depressa procurou despachar o homem no menor tempo possível. As ordens do gerente, nesse sentido, giravam em torno do posto ter alguns diferenciais que precisavam ser seguidos ao pé da letra: oferecer bom atendimento ao cliente, agir com rapidez e elegância na maneira de abordar, preservar a discrição e, em hipóteses nenhuma, sair de cara feia, ou xingar os engraçadinhos, caso levasse uma cantada. O segredo estava também na diplomacia, na perspicácia e no saber se livrar dos elementos chatos, de mansinho, numa boa, com classe, sem lhe ofender a moral e o decoro.
Cristiane desde que fora admitida, como frentista, agia nos conformes. Aliás, as demais colegas se espelhavam nela. Assim, naquela manhã ao ver chegar a Mercedes preta, tratou de fazer o seu trabalho sem mais delongas. Contudo, não pode deixar de reparar no que acontecia no interior do veículo. Embora a janela não estivesse totalmente aberta, ela percebeu que a acompanhante do sujeito magro –, uma loirinha de cabelos compridos –, praticava sexo oral. Talvez a garota estivesse sendo forçada a fazer aquilo. Ninguém, em sã consciência, por mais depravado e sem vergonha que seja, se submeteria a pagar um mico daqueles. Por outro lado, se havia uma terceira pessoa ameaçando (escondida, talvez, no banco de trás), por que não gritou, nem tentou abrir a porta e sair para pedir ajuda?
Dorinha, a colega de Cristiane se aproximou para oferecer outros serviços, entre eles um cafezinho. Cristiane ainda tentou desviar a atenção da amiga, mas era tarde. O sujeito magro, desta vez, não abriu o vidro, escancarou a porta. Dorinha, diante disso, deu de cara com a cena patética. O cidadão, com o troço para fora da bermuda e a moça do banco do carona (a loirinha dos cabelos compridos), grudada nele, chupando, como se aquele ato fosse a coisa mais banal e corriqueira desse mundo. Dorinha, porém, seguiu à risca, as instruções: não esquecia da história dos três macaquinhos. Essa é a melhor filosofia para se trabalhar num posto de gasolina ou em qualquer outro lugar.
Sem perder a calma e mostrando serenidade, dirigiu-se ao cliente, desempenhando maravilhosamente a sua função e, por fim, propôs o café:
- O senhor aceita?
- Por gentileza.
- Sua companheira não gostaria de...?
O rapaz se abriu num sorriso debochado:
- Como pode ver, ela está ocupada, de boca cheia. Acredito que não vai querer misturar café ao leite condensado que logo deve jorrar em abundância.
Dorinha se afastou. Cristiane havia acabado de completar o tanque. Foi sua vez de se aproximar do freguês:
- Sua chave, senhor. Deu R$ 72 reais e 50 centavos. Vai querer o cupom fiscal?
- Não, belezura. Só estou à espera do cafezinho que a outra atendente solicitamente me ofereceu. Como pode perceber, não posso me dar ao luxo de me levantar daqui, ou a minha gatinha teria que interromper a sua merenda. Como é seu nome?
- Cristiane.
- Aqui está o dinheiro. R$ 75 reais. Pode ficar com o troco.
Dorinha chegou trazendo um copinho de plástico cheio de café dentro de uma bandejinha pequena.
- Senhor.
- Obrigado. Como é seu nome?
- Dorinha.
- Bonito. Gostei. Cristiane também. Legal. Vocês duas são uns amores.
A loirinha continuava na mesma posição, chupando, sem parar, imprimindo à cabeça um vai e vem cadenciado. Enquanto sorvia o café, o sujeito magro segurava nos cabelos dela e ordenava:
- Mais rápido, mais rápido. Cuidado para não derrubar meu café.
Agradeceu a bebida, fechou a porta. Antes de ligar o motor voltou a abrir o vidro. Dirigiu-se as duas:
- Meninas, aqui está o copinho. Tenham um bom dia.
Saiu tão silenciosamente como chegou.
- Você viu o que eu vi?
- Estou pasma! Olhe, estou tremendo. Meu Deus, que coisa horrível. Como é que uma garota simpática, de boa aparência, não deve ter 17 anos, pelo que pude perceber, se presta a fazer aquilo, em público?
- Dinheiro, amiga. O vil metal, como diz meu pai, faz das pessoas gato e sapato.
- Jamais passaria por um ridículo nessas proporções. Nem que a criatura fosse meu marido ou o príncipe mais bonito da face da terra. É o fim da picada!
- Concordo plenamente. E que picada!


















Inocência ultrajada

M
aria Julieta tinha tudo a tempo e a hora, do bom e do melhor. Não lhe faltava absolutamente nada. Essa mordomia se estendia do fogão de cozinha à cama onde dormia feita sob medida em madeira de lei, passando pelo carro último tipo estacionado na garagem e acabando nos vestidos de grife encontrados em lojas granfinas e sofisticadas. Em seu close, ao lado do guarda-roupa, perfilados um ao lado do outro, elegantes pares de sapatos para cada um dos dias do mês. Vestia uma elegância ímpar e jamais repetia um modelo. Madame de vitrina, praticamente todas as tardes um convite lhe esperava para um chá de confraternização ou troca de gentilezas nas residências de amigas – a maioria esposas de médicos que trabalhavam na clínica Tapajós&Tapajós, em plena Alphavile em Barueri. A pouco completara 25 anos, ao contrario do maridão, doutor Cornélio Dias Tapajós, cirurgião plástico renomado, em tempos passados assistente de Ivo Pitangui. Homem mais velho, passava dos 60. Todavia, não negava fogo. Mesmo nessa faixa de idade, dava trabalho, não fazia feio ou deixava a desejar. Punha, na moral, como se costuma dizer por ai, muitos garotões no chinelo, tal o vigor e a disposição na hora de fazer gracinhas para a esposa quando partia para o vamos ver como é que fica. E ficava mesmo. O casamento deles ia de vento em popa.
Maria Julieta não completara 16 anos quando viu, pela primeira vez, no consultório da clínica, o cara que viria a ser, dentro em breve, o príncipe encantado da sua vida. Tudo aconteceu ao acompanhar a única tia com quem vivia desde os 5 anos, que se internara para se livrar de uns incômodos que ameaçavam sua beleza. A jovenzinha se acendeu por dentro como uma desatinada, diante do primeiro garoto que lhe deu uma piscadela de olhos mais demorada e falou meia dúzia de palavras bonitas ao pé do ouvido. Ele também não ficou atrás. Investiu nas olhadas e paqueras, na verdade, ambos se corresponderam à altura, até que uma semana depois jantavam de mãozinhas dadas, como dois pombinhos apaixonados. Houve um pedido formal de casamento entre taças de champanhe e caviar e, nessa hora, ela Maria Julieta flutuou num espaço desconhecido que se descortinava a sua frente.
A principio, a tia deu contra, mas, afinal ela não passava de uma menina ingênua e ele, um coroa. Contudo, diante da devolução do cheque passado à clínica e uma série de outras conveniências, acabou por concordar com o matrimonio. Em menos de duas semanas Maria Julieta, agora senhora Cornélio Tapajós se mudava de mala e cuia para a espetacular mansão do médico em Aldeia da Serra, bairro nobre nas cercanias da grade São Paulo. Oito anos de felicidade plena e incondicional, regadas com muito amor, carinho, badalações, festas, encontros, simpósios, viagens, idas e vindas ao exterior. A garotinha do Morumbi, de certa forma, acertara na sorte grande. Não que precisasse. Trazia o vento dos bons presságios soprando sobre sua cabeça, ou mais precisamente a partir da morte dos pais, num acidente ocorrido na Rodovia dos Imigrantes, em direção a Santos. Passara a viver, desde esse fatídico dia, com a tal da tia ricaça, que lhe tratava como filha e a amava como ninguém. Jovem e bonita, conquistara sua independência financeira. Conseguira, num curto espaço, galgar destaque na sociedade aliás, seu rosto de princesa dos contos de fada não saia das colunas sociais. Como esposa de um cirurgião plástico conhecido internacionalmente, sua ascendência às altas esferas da burguesia chegou num abrir e fechar de olhos. Até aquele dia...
A porta de uma das cristaleiras, que ajudavam a adornar a sala imensa e ricamente mobiliada, emperrou. Em conversa com uma das empregadas que compunham a ala das serviçais a seu dispor, Maria Julieta descobriu que Chiquinha, a copeira, tinha um irmão entendido em assuntos relacionados a móveis finos e os consertava com impecável precisão. Assim, Pedro Mariano teve acesso à residência dos Tapajós. Num sábado, logo depois das 9 da manhã, estava o moço com a irmã, à espera de que a patroa despachasse o patrão para se ater ao que o levara até ali. A espera não se fez muito delongada. Menos de meia hora depois, Pedro Mariano se viu diante de uma deusa nunca dantes imaginada. A beleza ímpar da rainha Tapajós não obedecia a limites. O destino, a partir desse encontro mudou sistematicamente a vida de todos os envolvidos e acabou com a paz que reinava naquele doce lar. Pedro não se deparara com ninguém tão especial, pelo menos a ponto de ficar embasbacado, queixo caído, feito um doente mental.
- Me acompanhe, por favor. Mostrarei ao senhor o móvel que pretendo seja prontamente restabelecido à normalidade.
Pedro Mariano se deixou levar pelo braço como um extasiado diante de algo que até então só vira nas telas dos cinemas. Uma hora depois, o serviço ficava pronto. Mandou a irmã avisar que tudo estava nos conformes. A dona da casa voltou à cena. Desta feita, entrou na sala mais elegante que antes. Pedro sentiu um tremor. Começou a suar. Sua camisa colou nas costas.
- Senhora, me permite lavar as mãos?
Maria Julieta fez que sim, pediu um suco à Chiquinha que se afastou prontamente em direção a cozinha. A sós, ela e o rapaz, ao invés de conduzi-lo para os banheiros destinados aos empregados, apontou o seu, que ficava dentro do quarto da suíte do casal. Pedro Mariano, ao entrar naquele ambiente chiquérrimo, quase teve um ataque. Primeiro porque nunca havia visto nem estado num ambiente tão luxuoso e, segundo, ao lado do sanitário e da banheira de hidromassagem, havia uma parede, ou melhor, a parede se constituía num quadro enorme de Maria Julieta, de corpo inteiro, nua em pêlo, comendo uvas e fazendo uma pose tremendamente provocante e sensual. Seus brios de macho entraram em estado de alerta. Houve uma dificuldade enorme para abrir o zíper e tirar o grosso volume que latejava dentro da cueca apertada. Sentiu vontade de se acabar numa série de ejaculações em homenagem àquela formosura, que se oferecia, como uma gata selvagem, querendo ser possuída e amada.
Ao urinar, o jato escorreu para fora do vaso formando uma poça em torno de um tapete com desenhos do Piu-Piu. Pedro Mariano esquecera de mirar o fundo da bacia da privada, tamanha a tensão que fragilizava seu estado emocional..
Sem saber que estava sendo observado, Maria Julieta encostou a porta de acesso a seu quarto e se achegou do banheiro. Espiou, então, para o rapaz, ou melhor, sua atenção, nesse momento se desviou para o que ele segurava numa das mãos. Ao deparar com “aquilo” enorme e descomunal entre os dedos, arregalou os olhos e soltou um gritinho de espanto. Pego de surpresa, Pedro Mariano girou sobre si mesmo e, ao fazê-lo se viu, de calças curtas, diante de Maria Julieta, em carne e osso.
A partir daquele momento, nenhum dos dois conseguiu tirar o outro da cabeça. Até que a coisa acabou tendo que ser resolvida na cama. Pedro Mariano passou, então, a quebra galho oficial da mansão, ou seja, a fazer pequenos retoques aqui e ali. Cada dia pintava algum objeto para ser consertado ou restaurado. Além de quebra galho, o sortudo ganhou, igualmente, o posto de amante oficial da bela e apetitosa patroa de sua irmã Chiquinha e, como tal, a desfrutar não só dos prazeres que o corpo da amada lhe proporcionavam, mas dos presentes caros que ela comprava e oferecia em troca das mijadas que, como a presença dele, na casa, passaram a ser constantes no banheiro da suíte do quarto de casal.
O ilustre Cornélio Tapajós, cirurgião plástico renomado, exatamente dois anos depois, sem querer, sem esperar, sem ser avisado e sem planejar nada, acabou dando um flagra. Voltou de repente, para buscar o estetoscópio que esquecera sobre o criado-mudo. Maldita hora.Topou com a jovem esposa no banheiro, encostada no próprio retrato, aos gemidos de “vai, meu gato, me encha as entranhas com seus pêlos” sendo possuída, por Pedro Mariano. Enlouqueceu. Primeira reação: atirou na despudorada. Meio da testa. Os miolos dela mancharam a parede e seu corpo escultural se coloriu de sangue. Em seguida, o médico despachou o amante, sem se importar com aquela frase conhecida que surge na boca dos envolvidos nas horas erradas “amigo, me escute, não é nada disso que o senhor está pensando”.
Aldeia da Serra virou um inferno. Em meio aos gritos de “se entregue que é melhor, jogue a arma pela janela e saia de mãos para cima” da polícia, que cercou a mansão e do desespero dos empregados, vizinhos e curiosos Cornélio Tapajós da Clinica Tapajós&Tapajós, encostou a arma no ouvido e puxou o gatilho.























Peça de inquérito.

O
AQUILEU ERA REALMENTE UM HOMEM com agá maiúsculo. Macho até debaixo d’água. Como delegado titular da homicídios, um exemplo de policial linha dura. Queria tudo certinho e dentro dos conformes. Seus subordinados sabiam da fama, por essa razão, quando sentado em sua cadeira, no amplo gabinete, ninguém brincava. Até advogado de porta de cadeia receava visitar preso nessas ocasiões. Final de semana, depois do expediente, decidiu pescar com amigos, numa cidadezinha fora do seu Estado. Geralmente nessas pescarias rolavam muita carne no espeto, cerveja e mulheres bonitas. Até aí, tudo bem, o Aquileu não estava de serviço, nem perto de sua jurisdição, ao contrário, mais de seiscentos quilômetros o separavam da pacata Santa Gertrudes. Ademais, que mal havia sair da rotina e distrair um pouco as idéias? Filho de Deus gozava direitos iguais como todo ser humano mortal.
Assim, passou a mão nas tralhas, tirou da garagem uma BMW vinho, adquirida recentemente, e ainda sem placas e com os plásticos nos bancos e ganhou mundo.
Na roda de amigos e garotas, a algazarra corria às mil maravilhas. Depois de pescar num riozinho de águas límpidas e beber todas, se embrenhou, para caçar, mato a adentro, com alguns dos muitos rapazes que haviam sido convidados. No decorrer da farra, contudo, e no alvoroço que se seguiu, deixou cair, por descuido, numa espécie de clareira, todos os documentos. Daí em diante, nada restou nos bolsos que o identificasse. Pior, na história toda, é que ninguém viu a carteira rolar, nem ele próprio se deu conta. Aliás, estava como os demais, fora de si e grogue, mal conseguia parar em pé.
No domingo à noite, apesar dos companheiros insistirem para que não voltasse sozinho (afinal, passara todo o dia misturando cerveja, vinho e cachaça), Aquileu, teimoso, feito uma mula, tomou um demorado banho de cachoeira, mandou para dentro um prato de arroz com feijão e carne de porco e, em seguida, encarou a longa estrada de volta. Quilômetros à frente, uma blits o fez interromper a viagem. Tinha nego espalhado e armado até os dentes por todos os lados. Uma gangue vinda de Belo Horizonte havia saqueado um supermercado e levado todo o dinheiro da féria. Coincidentemente um dos carros envolvidos era uma BMW vinho. A Civil, e a Rodoviária fecharam o cerco. Não passava nem agulha. O sujeito que interceptou Aquileu chegou gritando.
- Pula fora, devagarzinho, não faça nenhum gesto suspeito e mantenha as mãos onde eu possa vê-las.
- Sou da casa...
- Identificação.
Procura daqui, procura dali, nada. Somente nessa hora Aquileu, efetivamente foi se dar conta de que deixara, ou perdera, todos os documentos. Não havia absolutamente nenhuma prova que fizesse dele um cidadão honesto e decente. Ainda assim, procura daqui, mexe dali, vira de um lado, futuca de outro, qual o quê. Nem os do carro, no porta-luvas para salvar a pátria.
- O bafômetro. Tragam o bafômetro.
- Meu amigo sou delegado de polícia.
- Identificação...
Fizeram uma vistoria minuciosa. Arrancaram tudo de dentro da BMW, inclusive uma pistola sete meia cinco, uma escopeta, duas caixas de munição e cartuchos deflagrados. Diante de tantas evidencias, partiram para uma geral.
Aí a cobra entrou em cena e começou a fumar de verdade.
Aquileu era bom de briga. Lutava caratê, kung-fu e capoeira, além de conhecer a fundo outros esportes violentos. Por ter recusado a assoprar o bafômetro, e por não poder provar o transporte das armas e das balas, levou um tapa no meio das ventas. Furioso, não deixou por menos, revidou. Partiu para a desforra devolvendo o tabefe. Um esquisitão, que segurava um revolver trinta e oito perdeu a arma e dois dentes. Outro beijou o asfalto com a testa esfolada. Um terceiro voou longe e caiu de quatro dentro de uma valeta perto do acostamento. A confusão, de repente criou formas gigantescas. Cada um que tentava pegar a unha, o Aquileu, ou ajudar os companheiros, saia com a fuça vermelha e o olho inchado. Vendo que perdiam terreno, um dos presentes solicitou reforço.
Pintou, na área, meia dúzia de viaturas vindas de todas as direções, sirenes ligadas e as luzes intermitentes ligadas. Um barulho infernal. Acionaram, também, o comissário do lugarejo, um velhote metido a valentão, que chegou, quase no mesmo instante. Todavia, Aquileu, por mais brigão e arisco que fosse e, ainda levando em consideração os vapores do álcool acumulado, e mais, exausto de tanto dar e receber cacetadas, acabou dominado, aliás, completamente nocauteado.
Finalmente conseguiram colocar-lhe as algemas.
- Cadê o valentão?
- Tá ali, doutor...
O tal comissário, muito brabo, e abusando do seu poder chutou com força as costas de Aquileu.
- Então você é um delegado?
- Positivo. Seu colega. Meu nome...
- Identificação...
- Acredite, não posso provar agora, mas...
- Seus comparsas foram para onde? Que rumo tomaram? E o produto do roubo, onde esconderam?
Cadê o restante das armas? Além de você, quantos mais conseguiram fugir? Desembucha de uma vez que é melhor. Lá na cadeia tenho uns métodos interessantes para fazer o sujeito soltar a voz. Tenho certeza que o meu amigo “delegado”, desculpe, o doutorzinho, particularmente, vai adorar...
Com a prisão do suspeito desfizeram a barreira. Levaram Aquileu, a BMW e as armas para a Delegacia. Na porta do prédio onde funcionava a DP, uma multidão de curiosos aguardava a chegada do comissário e do misterioso assaltante. Assim que se viu em frente ao edifício, o comissário ordenou a um agente que levasse o “delinqüente” para os fundos da construção e desse uma chuveirada fria no mais novo Jean-Claude Van Damme do pedaço para lhe acalmar os ânimos agitados. Em obediência, dois “canas” de olhos vermelhos e cabelos em desalinho se apresentaram para dar inicio ao tratamento vip, que consiste, primeiramente, na revista corporal, ou como é conhecida na gíria dos malandros, a “arrancada das penas do frango”.
Depois vem o tradicional banho do descarrego, ou o jato de água fria com mangueira de bombeiro, que atira a criatura longe. Por derradeiro, uma visita a sala especial, onde “encapuzados” fazem qualquer brutamontes soltar a língua e confessar que matou a mãe e comeu a irmã de sobremesa. Nessa ordem, começaram pela camisa. Em seguida o cinto, os sapatos, o relógio, celular, cordão de ouro, pulseira, até que chegou a vez da calça. Aquileu voltou a ficar endiabrado e a distribuir porradas, mesmo estando com os braços para trás, presos ao bracelete. Todavia, seus esforços resultaram em vão. Dominado, uma vez mais, pelos grandalhões com traços de Arnold Schwarzenegger, finalmente o jeans rolou pernas abaixo...
O espanto veio junto. A comoção pegou a todos, de surpresa. Tomou forma em rostos de aparências rudes que nunca abriram brecha para sorrisos. Olhares incrédulos seguidos de um Ohhhhh! uníssono, pipocou de canto a canto.
O comissário veio lá da recepção, onde dava entrevista à FM 91,9 Rádio Comunitária. Tudo girava em torno de política. O prefeito, o padre, os vereadores, todos, sem distinção, se faziam presentes no átrio da delegacia. Repórteres dos dois jornais diários, ávidos por um furo jornalístico, inédito naquele condado, obtiveram permissão para adentrarem no recinto e fotografarem o absurdo. Um sensacionalismo bizarro que certamente aumentaria a venda dos periódicos por muitas semanas. A gargalhada vinda dos fundos da construção estrondeava pelos quatro cantos e criava mais força, à medida que a notícia ia se propagando, numa velocidade incrível, de boca em boca, entre a multidão em polvorosa. O parrudo delegado Aquileu, saradão, queimado de sol, corpo atlético e de boa aparência, no lugar da cueca, usava uma minúscula calcinha vermelha.

Um comentário:

Lapa disse...

Há três tipos de mulher:

-as bonitas,

-as feias,

-e, as loiras...